S.M. o Imperador Dom Pedro II do Brasil
Durante a cerimônia da Fala do Trono
Em 2 de fevereiro, primeiro dia do ano legislativo, a presidente Dilma Rousseff cumpriu o dever imposto pela Constituição e enviou ao Congresso Nacional a mensagem presidencial. Trata-se do documento em que o governo faz um balanço do ano que se encerrou e enumera as prioridades do país para o ano que se inicia.
O ritual é mais antigo do que se imagina. Foi Dom Pedro I quem o inaugurou, quase dois séculos atrás, em 1823. O documento se chamava Fala do Trono. Hoje, o presidente da república apenas remete a mensagem ao Poder Legislativo. No período Imperial, o Monarca comparecia ao Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, no Rio, e proferia a Fala do Trono (OBS da pág. muito mais representativo) numa concorrida cerimônia, deixando claro o que esperava dos senadores e deputados naquele ano.
Na abertura dos trabalhos legislativos de 1826, por exemplo, Dom Pedro I pediu:
—
Deve merecer-vos sumo cuidado a educação da mocidade de ambos o sexos.
O Brasil oferecia escola apenas para os meninos. A palavra do Imperador foi decisiva. No ano seguinte, o Senado e a Câmara aprovaram uma lei determinando que se instalassem “escolas de primeiras letras” para meninas nas cidades mais populosas.
Dom Pedro II herdou a tradição das Falas do Trono. Em 1853, ele apresentou outra prioridade:
—
Recomendo-vos a criação de um banco, solidamente constituído, que dê atividade e expansão às operações do comércio e indústria.
Naquele momento, apenas bancos privados operavam no Império. O Banco do Brasil, fundado por Dom João VI em 1808, não suportara as polpudas retiradas feitas pela corte portuguesa antes do regresso para Lisboa e acabara indo à bancarrota em 1829. Faltava um banco estatal. Passados dois meses da Fala do Trono, os senadores e deputados avalizaram a criação do segundo Banco do Brasil, o mesmo que existe até hoje.
Nos nove anos entre a abdicação de dom Pedro I e a subida de dom Pedro II, os pronunciamentos foram proferidos pelos regentes, entre eles o Padre Feijó. Nas ocasiões em que o segundo monarca esteve fora do Brasil, a missão de falar aos parlamentares coube à Princesa Dona Isabel. Os discursos invariavelmente começavam com o vocativo “augustos e digníssimos senhores representantes da Nação”.
Pouco antes da queda da Monarquia, as folhas lidas pelos Imperadores e regentes foram encadernadas num volume único. Hoje amarelada pelo tempo, a versão original do livro Falas do Trono está sob a guarda do Arquivo do Senado, em Brasília, protegida numa sala com controle de temperatura e umidade.
Em dezembro, a Unesco (braço da ONU para educação, ciência e cultura) reconheceu o valor histórico do livro "Falas do Trono" e o incluiu na lista brasileira do Programa Memória do Mundo. Só entram na lista documentos e arquivos que sejam únicos ou raros, tenham grande significado social, mereçam ser difundidos e exijam cuidados de conservação para não se perderem.
No Brasil, a Unesco também reconhece, por exemplo, o diário das viagens de Dom Pedro II, o acervo documental da Guerra do Paraguai e os arquivos de Machado de Assis.
O Programa Memória do Mundo é repetido em vários países. Na Alemanha, a Unesco tombou a Bíblia de Gutenberg. Em Portugal, a carta de Pero Vaz de Caminha narrando a descoberta do Brasil.
A leitura das falas do trono leva a uma viagem panorâmica pelas quase sete décadas do Brasil monárquico. Além das prioridades para o ano, o soberano falava da situação interna do Império e das relações com outros países. Em 1826, Dom Pedro I citou a guerra pela província Cisplatina (atual Uruguai):
— A província Cisplatina é a única que não está em sossego, pois homens ingratos e que muito deviam ao Brasil contra ele se levantaram e hoje se acham apoiados pelo governo de Buenos Aires, atualmente em luta contra nós. A honra nacional exige que se sustente a província Cisplatina, pois está jurada a integridade do Império.
Em 1831, Dom Pedro I abdicou e voltou para Portugal. O príncipe Dom Pedro II, com apenas cinco anos, não poderia ser Coroado. Instalou-se, então, um governo de regentes, que conduziria o Império até a maioridade. Na primeira Fala do Trono no período, os três regentes provisórios frisaram o fato de Dom Pedro II ser brasileiro, e não português como Dom Pedro I, o que permitiria a consolidação da Independência:
— Não foi só solene esse dia [o da aclamação de Pedro II]. Ele se fez também memorável pelo contentamento geral e demonstrações não equívocas do intenso amor e respeito com que o povo saúda o seu novo monarca, ainda infante, genuíno brasileiro e sagrado objeto da sua patriótica veneração.
Na década dos regentes, as falas do trono abordaram as rebeliões que incendiavam o país. A Cabanagem, no Grão-Pará, e a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, foram citadas pelo padre Feijó em 1836. De acordo com ele, “o vulcão da anarquia” ameaçava “devorar o Império”.
— Do Pará, faltam notícias modernas. Por bem ou por mal, será a cidade de Belém arrancada às feras que a dominam. A sedição [insurreição] de Porto Alegre foi tão rápida que em poucos dias compreendeu a província inteira. O governo tem deixado entrever aos sediciosos que, no caso de contumácia [insistência], porá em movimento todos os recursos para sujeitá-los à obediência.
As convulsões do período acabaram forçando a antecipação da maioridade de Dom Pedro II. Apostava-se na figura do jovem monarca como capaz de pacificar o Império. Em vez dos 18 anos, assumiu o poder aos 14, em 1840. Ele fez seu primeiro pronunciamento ao senadores e deputados no final daquele ano — as falas do trono eram proferidas também no encerramento do ano legislativo.
— A resolução, por vós tomada e aplaudida pelos meus fiéis súditos em todo o Império, de apressar a época de minha maioridade, confio, senhores, que produzirá os mais salutares efeitos para a causa pública — disse.
A Guerra do Paraguai foi o tema dominante nas falas do trono entre 1865 e 1870. Em 1866, Dom Pedro II comemorava o avanço das tropas aliadas sobre o solo paraguaio:
— Deploro profundamente as vidas preciosas sacrificadas nesta guerra, mas é indizível meu orgulho contemplando o heroísmo que acompanha o nome brasileiro e a glória que imortaliza a memória de tantos bravos. As bandeiras aliadas já tremulam no território inimigo. Espero ver em pouco tempo terminada a guerra.
A previsão não se confirmou. A guerra ainda se arrastaria por mais quatro anos.
A gradual eliminação da escravidão, o tema mais sensível da Monarquia, apareceu em diversas falas do trono. Chama a atenção o uso dos eufemismos. Diante dos parlamentares, Dom Pedro II se referia aos negros como “elemento servil”.
— O elemento servil no Império não pode deixar de merecer oportunamente a vossa consideração, provendo-se de modo que, respeitada a propriedade atual e sem abalo profundo em nossa primeira indústria, a agricultura, sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação — afirmou ele em 1867.
O excessivo cuidado com as palavras tem explicação. Os ouvintes da fala do trono — senadores, deputados, ministros e nobres — eram, em grande parte, latifundiários, a quem não interessava a “emancipação do elemento servil”. Dom Pedro II não podia atropelar a classe social que dava sustentação ao Império. Os parlamentares aprovariam a Lei do Ventre Livre só em 1871. A Lei dos Sexagenários, em 1885. A Lei Áurea, em 1888.
O termo fala do trono não é apenas metafórico. O imperador lia o discurso de um trono posicionado com destaque no Palácio Conde dos Arcos. Era uma das poucas ocasiões em que dom Pedro II se paramentava com a coroa, o cetro, o manto e a murça feita de penas de papo de tucano.
Havia todo um cerimonial. Uma delegação de senadores e deputados recepcionava o monarca na porta do palácio. A Família Imperial era acomodada num camarote à direita do trono. Ao contrário de outros rituais, como o beija-mão, que acabaram sendo abandonados com o passar das décadas, a fala do trono resistiu até o fim do Império.
De acordo com Marcos Magalhães, historiador e consultor legislativo do Senado, o ritual das falas do trono foi importante na consolidação do Brasil, recém-emancipado, como nação:
— Para se consolidar, uma nação precisa ser construída também no imaginário coletivo. As imagens e os rituais, como as falas do trono, são fundamentais nesse processo.
Até mesmo episódios hoje menores da história surgiam nas falas do trono. Em 1875, dom Pedro II comentou a Revolta do Quebra-Quilos, em quatro províncias do Nordeste. O Império havia adotado o sistema métrico, mas parte da população se recusou a abandonar as incontáveis e ultrapassadas medidas usadas desde a Colônia, como a braça, a légua, o grão e a onça.
— Bandos sediciosos, em geral movidos por fanatismo religioso e preconceitos contra a prática do sistema métrico, assaltaram as povoações, destruindo os arquivos de algumas repartições públicas e os padrões dos novos pesos e medidas. Felizmente, sufocou-se de pronto o movimento criminoso.
De acordo com o historiador da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Juarez José Tuchinski dos Anjos, autor de um estudo sobre as questões educacionais nas falas do trono, o tom dos pronunciamentos deixa transparecer que os dois monarcas tinham temperamentos quase opostos:
— Dom Pedro I, que conduziu a Independência e enfrentou muita oposição, tinha um espírito centralizador e autoritário. Dom Pedro II, que chegou ao poder em meio a revoltas e agitações políticas, mostrava-se apaziguador e conciliador.
Isso fica claro na reação dos imperadores às críticas. Em 1829, dom Pedro I queixou-se aos parlamentares do excesso de liberdade de imprensa no Império e pediu que se reprimissem os “abusos” dos jornais. Dom Pedro II, ao contrário, sabia conviver com a imprensa hostil. Eram frequentes nas páginas da Revista Ilustrada charges mostrando o monarca senil, desinteressado da política e manipulado por seus conselheiros. Nem sequer as falas do trono escapavam da pena zombeteira da revista.
Pelas falas do trono, percebe-se a paixão que o segundo imperador nutria pelas novidades tecnológicas. Em 1872, anunciou que seria instalado um cabo telegráfico submarino conectando o Brasil à Europa. Ele chamou o telégrafo de “tão maravilhoso instrumento da atividade do nosso século”. Em 1873, comentou a participação brasileira na exposição universal de Viena, onde o Império exibiu seus “adiantamentos” e a “riqueza do território”.
Sempre que havia notícias na Família Imperial, elas eram anunciadas nas falas do trono. Em 1826, a imperatriz Leopoldina morreu. Dom Pedro I disse que uma “dor veemente” se apoderara de seu “imperial coração”. Quatro anos depois, ele comunicaria aos parlamentares que havia acabado de se casar “com a sereníssima princesa dona Amélia”. Em 1845, nasceu o primeiro filho de dom Pedro II, dom Afonso.
— Este primeiro fruto com que o céu abençoou o meu imperial tálamo [casamento], enchendo de delícias o meu coração, já como pai, já como monarca, satisfez igualmente os ardentes votos de toda a nação brasileira, que me ama e sinceramente deseja a perpetuidade da dinastia do fundador do Império.
O Príncipe, porém, morreria com apenas 2 anos de idade. Em 1847, o Imperador deu a notícia aos parlamentares afirmando que seu “paternal coração” estava “ulcerado”. No final de 1885, a Imperatriz Teresa Cristina levou um tombo e quebrou um braço. Na abertura dos trabalhos do ano seguinte, dom Pedro II avisou que ela já se achava, “felizmente, restabelecida” e agradeceu os “testemunhos de afeto”.
As referências a Deus eram constantes. Em 1850, o Imperador afirmou que uma “febre epidêmica” se espalhava pelo litoral e pediu à “Divina Misericórdia” que livrasse “para sempre do Brasil semelhante flagelo”. Em 1860, ele disse que a grave seca que castigava parte das províncias do Norte — como se chamava o Nordeste — vinha diminuindo “graças à Providência Divina”.
O historiador Mauro Henrique Miranda de Alcântara, professor do Instituto Federal de Rondônia, fez um estudo sobre as referências à escravidão nas falas do trono. De acordo com ele, ainda há nesses pronunciamentos farta e inexplorada matéria-prima à espera dos pesquisadores:
— Os historiadores que se dedicam ao Império sempre recorrem às falas do trono para buscar informações sobre pontos muito específicos, como a abolição da escravidão. Por um lado, há questões recorrentes nos pronunciamentos que ainda não foram esmiuçadas, como as epidemias e as secas. Por outro lado, falta uma pesquisa mais ampla, que esquadrinhe todo o conjunto das falas do trono.
Ricardo Westin | 02/02/2015, 15h05 - ATUALIZADO EM 06/02/2015, 15h24