quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O PAPEL DA MONARQUIA ESPANHOLA

S.M. o Rei Don Felipe VI de Espanha

Por Beatriz Bastide Horbach
Assessora do STF

 crise com a Catalunha evidencia os mecanismos democráticos dos quais dispõe a Constituição espanhola para preservar o quadro de normalidade institucional do país[1]. A começar pela inédita utilização do art. 155, que autoriza o Governo a adotar medidas necessárias ao cumprimento forçoso, pela Comunidade Autônoma, de suas obrigações constitucionais para preservação do interesse geral. De clara inspiração na “coerção federal” (Bundeszwang) do art. 37 da Lei Fundamental de Bonn, a medida foi utilizada em outubro de 2017 para destituir o governo catalão e convocar novas eleições locais.

Em paralelo, o Tribunal Constitucional espanhol também age durante a crise, proferindo decisões favoráveis a Madri em casos de tensão com o governo catalão. Nos últimos anos, a Corte vem manifestando em seus julgados a importância da unidade espanhola e do respeito ao Estado democrático, ressaltando que os pluralismos político, linguístico e cultural são assegurados pela Constituição e de acordo com as regras desta devem ser encarados.

Ao lado da atuação do Governo e do Tribunal Constitucional espanhol, a gravidade da situação com a Catalunha restou evidenciada quando um último recurso de manutenção da democracia entrou em jogo: o Rei da Espanha.

Em outubro de 2017, Felipe VI fez seu primeiro pronunciamento extraordinário desde que ascendeu ao trono, três anos antes. Dois dias após o referendo independentista catalão, declarou em rede nacional que a situação de extrema gravidade requer compromisso de todos com os interesses nacionais, sendo “responsabilidade dos legítimos poderes do Estado assegurar a ordem constitucional e o normal funcionamento das instituições, a vigência do Estado de direito e o autogoverno da Catalunha, baseado na Constituição e em seu Estatuto de Autonomia”.

Como Chefe de Estado, transmitiu a todos “uma mensagem de tranquilidade, de confiança e de esperança” e lembrou aos catalães que “não estão sozinhos, nem nunca estarão; têm todo o apoio e a solidariedade do resto dos espanhóis e a garantia absoluta do Estado de direito na defesa da sua liberdade e de seus direitos.”. Felipe VI encerrou seu pronunciamento ressaltando o firme compromisso da Coroa com a Constituição e com a democracia, sua entrega ao entendimento entre os espanhóis e a sua missão, como Rei, à manutenção da unidade da Espanha.

Reações da população, positivas e negativas, à parte, o fato é que o rei procurou seguir a cartilha de funções de um Chefe de Estado, símbolo da unidade e da permanência do país, no caso, “árbitro e moderador do regular funcionamento das instituições”, nos termos do art. 56 da Constituição espanhola.

Nesse papel, não é a primeira vez que um rei da Espanha se apresenta à população em momento de crise como instrumento de manutenção – ou tentativa de manutenção - da estabilidade nacional. O pronunciamento de Felipe VI foi muito associado ao proferido por seu pai, Juan Carlos I, em 1981, contra a tentativa de golpe então sofrida.

Para entender esse caso e a figura do rei como garantidor da ordem constitucional espanhola, interessante voltar-se um pouco ao passado e às bases que formaram a moderna democracia espanhola, curiosamente desenhada por roteiro que inclui um salto dinástico e a formação do futuro rei por Francisco Franco, responsável por sua educação desde os seus dez anos de idade.

Com a proclamação da República, em 1931 – Franco assumiu o poder apenas em 1936 -, o então rei Afonso XIII, avô de Juan Carlos, retirou-se ao exílio. Desde fevereiro de 1941, com a abdicação poucos dias antes de sua morte, seu filho, Juan de Borbón y Battenberg, passou a ser titular dos direitos dinásticos da Coroa espanhola.

Exilado na Suíça, Juan de Borbón y Battenberg, Conde de Barcelona, emitiu em 1945 o Manifesto de Lausanne, no qual declarava que “apenas a Monarquia tradicional pode ser instrumento de paz e harmonia para reconciliação dos espanhóis, apenas ela pode obter respeito no exterior, mediante um efetivo Estado de direito e realizar uma harmoniosa síntese da ordem e da liberdade em que se baseia a concepção cristã de Estado.”. Dirigiu-se a Franco “a requerer formalmente que, reconhecendo o fracasso de sua concepção totalitária de Estado, abandone o poder e dê início à restauração do tradicional regime espanhol, único capaz de garantir a religião, a ordem e a liberdade”

Dois anos depois acabou sendo promulgada a Lei de Sucessão à Chefia do Estado (Ley de sucesión en la Jefadura del Estado), que seria a quinta, das oito leis fundamentais que regeram o estado franquista. Em seu artigo primeiro, determinava que a Espanha, “como unidade política, é um Estado católico, social e representativo que, de acordo com sua tradição, declara-se constituído em um Reino”. O Chefe de Estado seria Franco, Caudillo de España y de la Cruzada, a quem competia a qualquer momento propor às Cortes a pessoa que deveria vir a ser chamada para sua sucessão, a título de rei ou regente. O Generalíssimo passou a ser, então, Chefe de Estado de um reino com um trono vacante e assim deveria permanecer até sua morte ou incapacidade para governar.

Após protestar e denunciar a ilegalidade da Ley de Sucesión, inclusive porque não fora consultado sobre seu conteúdo, o Conde de Barcelona acabou por pactuar com Franco que seu filho, Juan Carlos, então com dez anos de idade, regressaria ao país e continuaria seus estudos na Espanha, aos cuidados do ditador. Ele passou então a ser educado por um pequeno grupo de professores leais ao Movimento Nacional, único partido no qual se assentava o regime político, em classe escolar especialmente criada para ele. Começava, aí, a formação do futuro rei e de sua estreita relação com o Generalíssimo.

Após anos de expectativa e de complicados momentos entre Juan de Borbón e Franco, apenas em 1969 este enfim se utilizou da prerrogativa de indicar seu sucessor e apontou Juan Carlos para a função, outorgando-lhe o título de Príncipe da Espanha e pulando uma geração dinástica – ou seja, passando por cima de seu pai, legítimo herdeiro do trono. Iniciou-se, aí, um conflito entre os Bourbon.

Nessa época, Juan Carlos referiu-se à escolha como uma boa oportunidade de “reinstauração do princípio monárquico”, ressaltando que “nenhuma monarquia foi reinstaurada de maneira rígida e sem sacrifícios.”. Para os monarquistas tradicionais, a palavra “reinstauração” nada mais foi do que uma justificativa para romper com a linha sucessória. Apenas uma restauração da Monarquia seria legítima e, nesse caso, o poder dinástico estaria nas mãos de seu pai.

Seis anos depois, em 1975, com a morte de Franco, aos 82 anos, Juan Carlos foi nomeado rei da Espanha pelas Cortes e pelo Conselho do Reino. Com a aprovação das Cortes, necessária nos termos da lei, prestou lealdade aos princípios do Movimento Nacional, juramento que, apesar de então exigido, passou a ser bastante controverso e mencionado diversas vezes por opositores para questionar até que ponto ele estaria comprometido com a transição à democracia.

Todavia, em sua primeira mensagem à população, deixou clara sua intenção de conduzir o país a uma monarquia parlamentar e democrática. Ressaltou que uma sociedade livre e moderna requer a participação de todos, frisando seu desejo de atuar como intermediário, guardião da Constituição e defensor da Justiça, entendendo como fundamental o reconhecimento dos direitos sociais e econômicos. Nesse caminho, a ação conjunta de três fatores seria essencial: a tradição histórica, as leis do Estado e a vontade do povo.

Iniciou-se, então, o período de transição, com uma série de acontecimentos políticos que conduziriam à recuperação da soberania pelo povo e ao desenvolvimento de um processo constituinte democrático. O rei optou por uma mudança lenta, negociada, uma transação pactuada. De início, considerou importante a estabilização da monarquia, procurando consolidar uma imagem da Coroa que não fosse diretamente identificada ao regime franquista. Também buscou conquistar a simpatia do povo.

Estabeleceu, ademais, que a transição do regime ditatorial ao democrático deveria se desenvolver a partir das reformas das leis já existentes, evitando-se uma ruptura completa. Para tanto, em 1976 foi promulgada a última das oito leis fundamentais do período franquista: a Ley para Reforma Política, muita vezes chamada de “lei-ponte”, por ser o instrumento jurídico que atuou como elo entre a legalidade do regime franquista e a Constituição de 1978.

É dito que o elemento mais essencial a esse período foi o consenso. Era comum a ideia de que todos precisariam colaborar para que o processo democrático tivesse continuidade e êxito, uma vez que o modelo transacional espanhol caracteriza-se por ter início dentro do próprio regime.

A série de medidas previstas pela Lei para Reforma Política conduziram às primeiras eleições democráticas, realizadas em junho de 1977, e à promulgação da Constituição espanhola, em 29 de dezembro de 1978, submetida a referendo popular, no qual obteve cerca de 80% de aprovação.

O novo texto constitucional teve a difícil tarefa de acomodar as diferentes realidades históricas do país e de criar um marco político e democrático, derrogando oficialmente o regime franquista. Sua elaboração, assim como as negociações dos chamados Pactos de Moncloa, evidenciam que a volta à democracia foi possível graças a uma transição costurada, de fato, com base no consenso entre visões políticas, no entendimento entre variadas perspectivas, bem como na determinação de Juan Carlos I a afastar-se do antigo regime ditatorial, ainda que por ele formado e bastante influenciado.

Pela Constituição de 1978, o Estado espanhol passou oficialmente a ser uma Monarquia parlamentarista. Isso significa que o chefia do Estado é ocupada pelo monarca, mas o rei não possui poder decisório. É a ideia de que o rei reina, mas não governa. O monarca é um órgão constitucional, e não um poder do Estado, ou seja, não integra a estrutura tripartite de poderes. O texto espanhol prevê, ainda, que o monarca não responde por seus atos, seguindo a tradicional ideia de que o rei presta contas apenas a Deus, mas, para adaptar o conceito ao regime democrático, indica que seus atos, de maneira geral, precisam ser referendados.

Quanto à legitimidade do novo rei, um mês antes das primeiras eleições democráticas, em 1977, o Conde de Barcelona oficialmente abdicou de seus direitos sucessórios. E, para consolidar ainda mais a dinastia, foi proposto, durante a elaboração da Constituição, que ao artigo que previa “A Coroa da Espanha é hereditária aos sucessores de S.M. Don Juan Carlos I de Borbón”, fosse acrescentada a expressão “legítimo herdeiro da dinastia histórica” (art. 57.1), eliminando a origem franquista e ressaltando sua legitimidade histórico-tradicional. Com isso, os pais da Constituição espanhola consignaram expressamente que o direito real já era existente, não fora criado pelo ditador.

Após três anos de estabilidade institucional, entretanto, a então recente democracia espanhola foi submetida ao primeiro grande desafio: a tentativa de golpe de 23 de fevereiro de 1981. Ao ser votada a investidura de um novo governo, o Palácio do Congresso foi invadido por militares, que anunciavam a tomada do poder.

Na madrugada de 23 para 24 de fevereiro, o rei divulgou pronunciamento em que pedia serenidade e confiança à população, confirmando que ordenara às autoridades civis e à junta de chefes do estado maior, como Chefe do Exército, que tomassem as medidas necessárias à manutenção da ordem constitucional dentro da legalidade vigente. Nos bastidores, realizou mobilizações e conversas para o restabelecimento da normalidade que acabaram por dissolver o quadro de crise. Juan Carlos I, até então considerado rei apenas do ponto de vista jurídico e, por muitos, herdeiro do legado de Franco, com uma brevíssima mensagem reproduzida pelos meios de comunicação legitimou-se como verdadeiro rei e defensor dos espanhóis.

Juan Carlos I tomou, nesse momento de crise, a responsabilidade pela manutenção do regime democrático. Terminou sua fala na madrugada do dia 23 para 24 de fevereiro de 1981 afirmando que: “a Coroa, símbolo da permanência e da unidade da Pátria, não pode tolerar de forma alguma ações ou atitudes de pessoas que pretendam interromper a força o processo democrático que a Constituição votada pelo povo espanhol determinou por meio de referendo”, em tom muito semelhante à mensagem transmitida por seu filho 16 anos depois.

Ao clamar pela união, pelas instituições democráticas e, principalmente, ao tranquilizar a população, resgata-se a ideia de que o “rei, em um país livre, é um ser à parte, superior às divergências de opiniões, cujo interesse maior é a manutenção da ordem e da liberdade, inatingível por todas as paixões da condição comum”. É o conceito de Benjamin Constant de que o poder real na monarquia constitucional deve estar situado acima dos fatos “e, sob certo aspecto, neutro, a fim de que sua ação se estenda a todos os pontos que se necessite e o faça com um critério preservador, reparador, não hostil”, com o verdadeiro interesse que “um dos poderes não destrua o outro, permitir que todos se apoiem, se compreendam e que atinem comumente”.

Nesse contexto, a efetividade da intervenção do Chefe de Estado em momentos de crise está intimamente ligada a sua legitimidade. No caso espanhol, é dito que a tarefa de Felipe VI é muito mais difícil que a enfrentada por seu pai em 1981, já que na década de oitenta a ânsia por democracia era sentimento generalizado. Hoje, além da complicação dos fatos, em si, a própria instituição monárquica vive uma crise de popularidade, reforçada em período de dificuldades econômicas do país e por escândalos na família real – um pouco amenizada com a abdicação de Juan Carlos I, em tentativa de revitalizar a Monarquia.

De qualquer forma, a polêmica atuação da Casa de Bourbon antes, durante e depois do período ditatorial de Franco é importante elemento da configuração da democracia espanhola, e interessante aspecto da história constitucional do país.

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