Vista do interior de Curuzú, 20 de setembro de 1866
Tolstoi estava tristemente correto ao escrever que um povo feliz não tem história. Daí lançar-se mão para lembrar as pessoas de que elas têm motivos para estarem infelizes e que é preciso “remediar” o passado. “O Brasil tem uma dívida histórica com o Paraguai, que se pode pagar com a concessão de um tratamento diferenciado nas relações entre os dois países. No caso de Itaipu, o Brasil deveria pagar a preço de mercado – e não a preço de custo, como prevê a parceria – a energia excedente que o Paraguai não consome”, afirmou, em entrevista, o novo presidente paraguaio, Fernando Lugo, invocando, em nome de questões atualíssimas, a velhíssima Guerra do Paraguai (1865-1870). “O presidente Hugo Chávez recordou ao presidente Lugo sua admiração pela luta histórica do povo paraguaio, digno herdeiro da memória do marechal Francisco Solano López, e coincidiram na necessidade de continuar construindo a União de Nações Sul-americanas sobre a base da reivindicação da história de luta de nossos povos”, reitera a nota emitida pela chancelaria venezuelana sobre o telefone dado por Chávez ao colega recém-eleito.
“López foi o grande patriota latino-americano, humilhado pela aliança da tríplice traição a América Latina, seus homens e suas mulheres”, declarou recentemente a presidente argentina, Cristina Kirchner, que batizou uma unidade do Exército argentino em homenagem a López. A tese da “dívida histórica” é dividida também por brasileiros, como o senador Cristovam Buarque, que defende mudanças no acordo sobre Itaipu: “Não podemos simplesmente negar ao Paraguai o direito de pedir o reajuste. Nós não podemos esnobar o Paraguai. Até porque temos uma dívida com esse nosso país vizinho, já que há 138 anos matamos 300 mil de seus cidadãos na Guerra do Paraguai. Em proporção, seria como se matassem 9 milhões de brasileiros”. Não é de hoje que ditadores, como Stroessner, e militantes de esquerda se unem na condenação da Guerra do Paraguai como um “massacre imperialista” feito pelo Brasil, em suposto conluio com a Inglaterra, que teria dizimado as chances de grandeza paraguaia, ou nas palavras de Lugo: “Há um reconhecimento da dívida histórica com o Paraguai. Acreditamos na Justiça e o Paraguai deveria voltar a ocupar o lugar que ocupava: o país mais desenvolvido, o mais unido, que tinha um projeto econômico diferenciado”.
Assim, por mais inusitado que possa parecer, o presente é um ótimo momento para voltar a falar de figuras-chave de um conflito tão antigo. Como na nova biografia do general Osório (General Osório, Companhia das Letras, 262 páginas, R$ 35,50), lançada no bicentenário de seu nascimento, escrita pelo historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita guerra, uma história revisionista da Guerra do Paraguai, que põe abaixo mitos como o extermínio da população masculina paraguaia, os ideais modernizantes de López e a vitimização do Paraguai. “Quem fala em traição ou está mal informado ou tem segundas intenções. López foi o agressor, que invadiu os vizinhos. Não houve a tal industrialização paraguaia e nunca existiu a tal idade de ouro do Paraguai. López não era um paradigma de progresso, de luta contra o imperialismo, nem um construtor de sociedades modernas”, explica. “O revisionismo argentino e uruguaio é de esquerda e o paraguaio era um nacionalismo de direita que buscava legitimar um ditador como Stroessner usando a figura de outro ditador, López”. A história não foi bem servida em nenhum dos casos. “No Paraguai, a exaltação de López serviu à ditadura; no Brasil, a satanização da guerra e do comando brasileiro serviu de arma de combate à ditadura”, observou, com sabedoria, José Murilo de Carvalho.
A confusão sobre a real dimensão do conflito e de seus personagens, porém, não se restringe apenas a interesses comerciais ou oportunismo político. O comandante do Exército brasileiro no Paraguai, Osório, também sofreu com a reescrita interessada da história. “O Exército de Caxias, como se autodenomina hoje a instituição, foi por um bom tempo o Exército de Osório e essa mudança só pode ser entendida se relacionadas as trajetórias política e militar dos dois generais com o contexto histórico em que foram adotados como personagens paradigmáticos”, avisa Doratioto. “Afinal, embora nos dias atuais eles sejam lembrados como militares, também foram políticos e, em certas épocas, se dedicaram mais à política que ao Exército”. O Partido Conservador, pelo qual Caxias se elegeu senador, defendia o Estado centralizado e a manutenção da ordem social. Osório era do Partido Liberal, que priorizava a descentralização do poder e a maior participação dos cidadãos no processo político. Caxias era o Exército de elite, formado na Academia, enquanto Osório era o Exército que vinha de baixo (e que, na velhice, confessou seu horror pela vida militar) e que relevava pequenas transgressões, formalismos e aparências. Daí a razão da jovem República, feita por golpe militar, nota Doratioto, sem ter símbolos, ter que descobrir em Osório o “pré-republicano”, a ponto de, em 1894, Floriano Peixoto dirigir uma manifestação popular para a inauguração da estátua do general no Rio de Janeiro, na atual Praça XV.
“Foi o primeiro general brasileiro a pisar no território paraguaio e enquanto Caxias e outros militares e políticos brasileiros desconfiavam do presidente argentino Mitre (o líder da Tríplice Aliança contra o Paraguai), afirmando que ele agia para prolongar o conflito, quer devido a ganhos financeiros que proporcionava à Argentina, quer para enfraquecer o Império, Osório foi um dos poucos militares brasileiros que não partilhavam desse sentimento”, afirma Doratioto. O aventureiro inglês Richard F. Burton, cônsul inglês em Santos e observador britânico no cenário da guerra, relatou que os soldados admiravam Osório e acreditavam que “ele tinha o corpo fechado e, depois dos combates, sacudia o poncho para as balas caírem”. O general era visto, pelos colegas de hierarquia, como “irresponsável” pela maneira como colocava a vida em risco durante os combates. Na Batalha do Avaí, um tiro destruiu seu maxilar, mas, mais tarde, quando Caxias foi substituído pelo conde d’Eu no comando militar das tropas, não fugiu ao dever e voltou ao fronte para lutar.
Exército brasileiro desembarcando no território paraguaio
No ataque à fortaleza de Humaitá, principal baluarte de defesa de López, Osório foi enviado por Caxias para averiguar o sucesso do bombardeio fluvial feito pela esquadra aliada. Enfrentando resistência, afirmou ter recebido ordens de Caxias (que nunca confirmou ter dado tal comando) para recuar, provocando pesadas perdas. “O episódio deixou feridas, exploradas por lideranças liberais, que passaram a apresentar Osório como vítima de Caxias, porque este o veria como rival”, observa o autor, que lembra como, ao fim do conflito, “Osório era, à exceção de Pedro II, o brasileiro mais popular, um fato desconfortável para o governo conservador”. Logo, é fácil compreender por que durante 4 décadas a principal comemoração militar brasileira ocorria no aniversário da Batalha de Tuiuti, onde Osório foi o herói do dia. Mais complexo é entender o “rebaixamento” do general a partir dos anos 1920 seguida pela elevação de Caxias, até então uma figura secundária, ao posto de Patrono do Exército.
Reinvenção
Trincheiras de Tuiuti, batalha de 24 de abril de 1866
“Em contraponto ao ‘esquecimento’ de Caxias, havia uma celebração de Osório como grande militar, um culto em boa medida espontâneo”, avalia o historiador Celso Castro, para quem as razões dessa mudança estão na preocupação do Exército com as agitações “tenentistas”, que levariam à Revolução de 1930. “Mais do que a reorganização de uma instituição fragmentada, ocorreu uma reinvenção do Exército como instituição nacional, herdeira de uma tradição específica e com um papel a desempenhar na construção da nação brasileira”, afirma Castro. Para tanto, foi preciso “inventar” um Caxias adequado ao novo papel simbólico exigido. “Os predicados atribuídos a Caxias – de um general disciplinado e apolítico – são parte dessa imagem criada no século XX, atendiam a interesses de uma República nacional conservadora que se esforçava para conter a indisciplina militar. Esses predicados, porém, caracterizam um ‘ser militar’ que não existia no século XIX”, analisa a historiadora Adriana Barreto de Souza, autora da tese de doutorado O Duque de Caxias e a formação do Império brasileiro. “Entronizado nesse panteão, e após 21 anos de ditadura militar, o diálogo com Caxias se tornou mais difícil, pois ele era ou tratado com admiração irrestrita por militares, ou demonizado como patrono do Exército pela oposição que se fazia ao golpe de 1964. Ele virou o “duque-monumento”, observa Adriana.
Se de início a troca da guarda Osório por Caxias serviu como forma de valorizar a legalidade e o afastamento da política, a partir do Estado Novo varguista essa mudança, embora mantida, adquiriu novos tons: “Passou-se a ressaltar as qualidades do duque como chefe militar a serviço do Estado forte e centralizado, tal qual o da ditadura de Vargas”, avalia Doratioto. Essa instrumentalização persistiu após 1964, quando os militares no poder colocaram em relevo as características de Caxias que interessavam à situação vigente, como a de ter sufocado movimentos revolucionários. “Essas foram de fato suas características e, à exceção do princípio da centralização, também as de Osório. Contudo os dois generais tinham ainda como características a subordinação ao poder civil, a aversão ao caudilhismo e a repulsa ao militarismo, mas estas os ideólogos do autoritarismo não tinham interesse em lembrar e os da democracia negligenciaram em recuperar.” Infelizmente, por vezes, é mais conveniente esquecer a frase de Tolstoi e trocá-la pelo pragmatismo de um Bismarck: “A história é um simples pedaço de papel impresso; o principal é fazer história, e não escrevê-la”.
LINK ORIGINAL: REVISTA PESQUISA - https://goo.gl/73ZgH2
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