sábado, 10 de junho de 2017

NA FAZENDA, A FORMAÇÃO E A VIDA FAMILIAR

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[Publicamos um depoimento de S.A.I.R. o Príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil, registrado em suas memórias ainda inéditas, que, embora longo, é um texto tão interessante, cheio de frescor e carregado de realidade, que mostra como foi sua infância e juventude em uma fazenda no norte do Estado do Paraná, onde viveu com seus pais e seus onze irmãos e irmãs mais novos.]

A Fazenda São José ficava num alto, a 7 km a Leste de Jacarezinho. Chegava-se a ela por uma estrada de terra bastante ruim que, na época das chuvas, só era transitável por veículos com tração nas quatro rodas. E, mesmo estes deviam, às vezes, ser retirados dos atoleiros por juntas de bois. Era uma propriedade de 72 alqueires de terra roxa e estava coberta de cafezais. Alguns pequenos pastos permitiam a criação de gado leiteiro, para consumo doméstico.

Em torno de uma excelente mina de água havia uma boa colônia, uma casa para administração, uma tulha, um terreiro de café e um mangueirão cercado de altas paineiras, onde os colonos criavam porcos e galinhas para seu próprio consumo. A sede foi construída por meu Pai, no morro sobranceiro à colônia, a partir de uma planta desenhada pelo arquiteto Adolpho Lindenberg. Três enormes mangueiras a cercavam e davam sombra e frescor nos dias de verão. De sua varanda avistava-se, ao longe, a cidade de Jacarezinho e, ao anoitecer, feéricos pores de sol. Um gerador movido por um motor a gasolina fornecia energia elétrica para a iluminação e para a bomba d’água. A fazenda constituía um todo orgânico sumamente aprazível e benfazejo. 

A rotina de nossa vida no campo se estabeleceu quase imperceptivelmente. De manhã, Papai nos levava de jeep para o colégio, cujas aulas começavam às oito horas e duravam até o meio dia. Voltávamos para a casa para o almoço e à tarde fazíamos nossos deveres escolares, que nos tomavam uma hora ou duas e depois podíamos brincar ou passear a vontade. 

Aos domingos íamos à Missa, o mais das vezes na capela do Colégio Cristo Rei, e voltávamos para casa antes do meio dia.

Seja dito entre parênteses, que a estrada era tão ruim, que nos dias em que tudo corria normalmente, levávamos vinte a trinta minutos para percorrer os 7 km de poeira, buracos, pedras ou atoleiros que nos separavam da cidade. Com fortes chuvas acontecia, às vezes, levarmos até uma hora ou mais, pois mesmo o jeep atolava nos lamaçais que se formavam em poucas horas. Felizmente, meu Pai tomava esses sacrifícios com uma resignação cristã verdadeiramente modelar e dirigia com maestria qualquer veículo, em qualquer estrada ou situação. Ele dirigia tão bem que era capaz de mudar à vontade o estado de ânimo das pessoas que estavam no seu carro, principalmente em se tratando de crianças. 

S.S.A.A.I.I. os Príncipes Dom Pedro Henrique e Dona Maria da Baviera, sua esposa.

Enquanto estávamos no colégio, Papai fazia as compras que minha Mãe pedira, tratava de seus negócios na cidade e conversava com o Tio Gabriel [1] ou com conhecidos na cidade. À tarde, ele percorria a fazenda observando o estado do cafezal e fiscalizando o trabalho dos colonos. 

Nesta ocasião, eu gostava de acompanhá-lo, pois eram os seus melhores momentos. A sua grande dignidade e afabilidade impunham respeito e incutiam afeto aos empregados. O trato era o melhor possível entre patrão e subordinados. Exceto dois casos de colonos dados à bebida e ao jogo, não me lembro de nenhuma vez em que meu Pai tivesse que usar de severidade. Ele era exigente na qualidade do serviço, justo e pontual no pagamento dos salários, entretanto os colonos sabiam que podiam sempre contar com o patrão em qualquer emergência. Lembro-me ainda de inúmeras vezes em que, na alta madrugada, algum colono vinha bater à porta da sede pedindo que sua mulher, em trabalho de parto, ou um de seus filhos, tendo sofrido um acidente, fossem levados de automóvel à Santa Casa. Eles sempre eram atendidos e, quando necessário, Papai mandava vir de São Paulo, por avião, algum remédio que estivesse em falta em Jacarezinho. 

A recíproca também era comum. Os colonos tinham uma verdadeira dedicação pelos seus fazendeiros. Lembro-me de um caso que me impressionou profundamente:

Se até no Paraíso havia uma serpente, é normal que nesta terra de exílio, por melhores que sejam as circunstâncias, haja pessoas ruins e malévolas. Nós tínhamos um vizinho conhecido como desonesto e violento, que quis aumentar a sua propriedade às nossas custas. Para isso, ele empurrou os marcos e a cerca de divisa entre as fazendas alguns metros para dentro da meu Pai. Este mandou repor tudo como era antes. O vizinho renovou e aumentou ainda mais o seu avanço. Papai declarou que se ele não repusesse tudo como era antes a questão seria resolvida nos tribunais – ao que o vizinho retrucou com ameaças de morte. A questão estava neste pé, quando, num domingo, aparecerem na sede os homens da colônia, a procura de meu Pai, para dizer que queriam que ele soubesse que podia contar com eles para qualquer coisa, em qualquer circunstância. Em outras palavras, eles estavam dispostos a arriscar a vida por meu Pai e por seus interesses. 

Minha Mãe cuidava das pequenas doenças dos empregados e reunia na sede, todo domingo à tarde, as crianças da colônia para aulas de catecismo que ela mesma ministrava. Uma vez por ano, depois do exame pelo vigário, organizava-se a confissão e a festa da Primeira Comunhão das crianças, que estavam bem preparadas. Após a Missa, celebrada na sede, havia churrasco com bolo para todos os colonos e lembranças para os primeiros comungantes. Os filhos dos patrões deviam participar na distribuição dos presentes.

Havia também outras ocasiões na véspera das quais se matava um garrote, para deixar a carne durante a noite num tonel de tempero e no dia seguinte fazer um churrasco. Era na festa de encerramento da colheita e quando um filho dos patrões era batizado. Os colonos, vizinhos e conhecidos eram convidados.

A festa de encerramento da colheita era especialmente alegre, pois não era somente a comemoração do resultado dos trabalhos do ano, mas assinalava, também, o pagamento que os colonos recebiam por saca de café colhida, que era costume se dar além do salário mensal. Como sempre, as famílias mais numerosas eram as que mais lucravam, pois não só cuidavam de um maior número de pés de café, mas na hora da colheita eram as que mais sacas recolhiam e marcavam com seu nome. Era uma felicidade observar a alegria com que se dedicavam a essa tarefa e a beleza do gesto com que eles lançavam para o ar o conteúdo de suas peneiras, para separar as folhas e gravetos que se misturavam com os grãos de café. O trabalho de secagem dos grãos no terreiro tinha também uma grande e tranquila beleza. 


É preciso dizer que os colonos podiam muitas vezes plantar milho, arroz ou feijão entre as fileiras de pés de café, o que lhes proporcionava mantimentos para o próprio uso ou para alimentar os animais que criavam perto de suas casas: galinhas, porcos, cobras e uns poucos bovinos.

Numerosas famílias de colonos, em regra as famílias mais prolíferas, após oito ou dez anos de trabalho, tinham economizado o suficiente para compra um lote de terra. O sintoma de que isso tinha acontecido era a compra de um cavalo ou de uma mula pelo chefe da família, para poder percorrer a região à procura de um lote que estivesse à venda. Depois de algum tempo, ele vinha à sede a fim de pedir a conta e se despedir. Frequentemente, deixava um filho na fazenda ou uma filha para trabalhar como empregada na sede, pois o primeiro ano na nova propriedade era um ano sem renda e de aperto financeiro. E, em via de regra, as relações com o antigo patrão continuavam afetuosas e confiantes. 

Tudo isso fazia com que, nas agruras que sempre existem neste vale de lágrimas, houvesse na fazenda, tanto para os patrões quanto para os empregados, uma grande felicidade, que aliás não era privilégio da Fazenda São José, mas era o comum em mais ou menos todo o Brasil. São incontáveis, se não forem a maioria, os fazendeiros de hoje que foram antigos colonos que prosperaram, ou filhos de colonos que aos poucos se tornaram proprietários.

Evidentemente, isso é calado pelos agro-reformistas, pelos socialistas de todos os matizes e pelos clérigos esquerdistas, que, sob pretexto de levar a “justiça” para o campo, só querem, com a Reforma Agrária, destruir as estruturas sociais em que haja desigualdades proporcionais e harmônicas, próprias a uma verdadeira Civilização Cristã.

Na sede da fazenda havia uma pessoa de mentalidade completamente diferente, mas que durante vários anos conviveu conosco. Era uma governanta alemã, que minha Mãe trouxe da Europa em 1949, para ajudá-la a cuidar dos filhos que iam se tornando sempre mais numerosos. Fraulein Zita Donner, originária da região dos Sudetos, era uma mulher de estatura mediana para baixa, de compleição ossuda e musculosa, de temperamento nervoso, decidido e obstinado, mas dedicada e fiel. Ela nunca compreendeu o ambiente brasileiro, mas cuidou eximiamente de meus irmãos menores. Foi com ela que aprendi os meus primeiros rudimentos de alemão. Fazia parte dos seus deveres o de passear com as crianças, e ela o fazia gostosamente pelos cafezais. Enquanto andava, ela juntava cristais, ágatas e pequenas ametistas que abundavam na região, mas que não eram considerados de interesse especial por ninguém, a não ser por nós, crianças. Ao voltar finalmente para a Alemanha, ela levou um saquinho dessas pedras para Ida-Oberstein, cidade no Reno onde se lapida a maior parte das chamadas pedras semi-preciosas do mundo. O artesão a quem ela mostrou o produto de sua colheita não quis acreditar que tivessem sido encontradas à flor do solo no meio dos cafezais de uma pequena fazenda brasileira. Foi uma batalha convencê-lo da veracidade do relato da boa Fraulein. A riqueza e a fartura do Brasil, do mesmo modo como a bondade católica de nosso povo, são inimagináveis para um europeu que nunca esteve aqui.

[1] O Príncipe Gabriel de Bourbon-Sicílias, radicado no Brasil com sua esposa e filhos, era irmão caçula da Princesa Imperial Viúva do Brasil, Dona Maria Pia de Bourbon-Sicílias de Orleans e Bragança, e, portanto, tio do Príncipe Dom Pedro Henrique de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil. Sendo a diferença de idade entre tio e sobrinho de apenas 12 anos, os dois haviam crescido quase juntos e foram sempre muito unidos. A fazenda da Família Imperial Brasileira se situava perto da do Príncipe Gabriel, de modo que o relacionamento entre as duas Famílias se tornou bastante estreito. 

Foto: S.A.I.R. o atual Chefe da Casa Imperial do Brasil, Príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança, então Príncipe Imperial do Brasil, de pé, junto aos seus pais, SS.AA.II.RR. o Príncipe Dom Pedro Henrique de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil de 1921 a 1981, e a Princesa Consorte do Brasil, Dona Maria da Baviera de Orleans e Bragança, e cinco de seus irmãos mais novos, SS.AA.RR. os Príncipes Dom Francisco e Dom Alberto e as Princesas Dona Eleonora, Dona Maria Thereza e Dona Maria Gabriela de Orleans e Bragança; foto tirada na então residência da Família Imperial Brasileira, a Fazenda Santa Maria, no norte do Paraná, no início da década de 1960.

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