sábado, 17 de junho de 2017

O LEILÃO DO PALÁCIO IMPERIAL DE SÃO CRISTÓVÃO II

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"... o governo provisório espera de vosso patriotismo o sacrifício de deixardes o território brasileiro, com a vossa família, no mais breve possível. Para esse fim se estabelece o prazo máximo de vinte e quatro horas que contamos não tentareis exceder".

Trecho da carta do Mal. Deodoro da Fonseca enviada a D. Pedro II em 16 de novembro de 1889.

Um dos vários baús que foram a leilão, com a marca "Pedro II" gravado na frente, pertence ao antiquário e colecionador Fernando Lourenço Martins

Pelo texto acima, fica claro a urgência que os militares tinham de se livrar da presença do Imperador. A concentração de manifestantes em torno do Paço Imperial, no dia 17 de novembro, aumentou a preocupação dos republicanos. Temendo o aumento das manifestações, o governo provisório enviou o Cel. Mallet para comunicar à família imperial que deveriam embarcar para a Europa no meio da noite, o que provocou protestos de D. Pedro II, que pretendia assistir à missa pela manhã, antes de partir: "Não sou negro fugido. Não embarco a essa hora!" Mas, de nada adiantou. O Major Solon Ribeiro evacuou a praça cheia de gente e a família imperial foi obrigada a embarcar em plena madrugada.

No seu livro "Casa de Bragança-Casa de Habsburgo", escreveu Giulio Sanmartini: "Sente-se na carta, a mão de Benjamim Constant e no tempo dado à saída da família imperial, a incerteza do apoio popular ao novo regime, que era de total cunho militar, tanto que Deodoro não conseguiu sustentá-lo, renunciando à presidência e Floriano Peixoto consolidou-o à força das armas".

Com a mesma pressa com que se livraram do Imperador, o governo provisório queria se livrar dos bens da família, de qualquer coisa que lembrasse o regime deposto ou a figura do monarca. Antes mesmo da chegada da família à Europa, antes mesmo da morte de D. Tereza Cristina, em represália à recusa de D. Pedro II em aceitar a ajuda de custo de cinco mil contos, o governo baixou o decreto 78A, banindo o ex-imperador com toda a sua família do território nacional, com a proibição de ter bens no Brasil e dando-lhes um prazo para liquidar os que aqui possuíssem. Portanto, a venda dos bens da Família Real seria uma questão de tempo. Mas, vamos continuar lendo o relato de Francisco Marques dos Santos iniciado na edição anterior:

"O Museu do Imperador, no Paço de São Cristóvão (que fez parte do leilão), fora fundado por Dona Leopoldina, sua augusta mãe que, com carinho, buscou enriquecê-lo. As coleções numismáticas e de mineralogia datavam daquele tempo e quem primeiro classificou-as foi Roque Süch. No reinado de D. Pedro II foi o museu opulentado com preciosidades artísticas e científicas. Dentre os objetos que lá figuravam, segundo uma erudita crônica de O Paíz de 6 de agosto de 1890, notava-se um medalhão que o imperador trouxera de uma de suas viagens à Europa e que conforme ele próprio afirmava no rótulo escrito de seu punho: "Representa João Huss e foi feito das cinzas da fogueira em que o Concílio de Constança mandou queimar o célebre heresiarca". A caixa que encerrava essa medalha tinha o rótulo seguinte: "Foi feita de madeira tirada das árvores próximas ao lugar do suplício".

Importante era a coleção de objetos arqueológicos, destacando-se relíquias de Herculanum e Pompéia, estatuetas, hermas, panelas, vasos, repuxos, trabalhos de ferro, de cerâmica e de bronze. Sobre muitos desses objetos os desenhos, as tintas e as esculturas estavam perfeitas. De um lado do salão, formavam fechos armas modernas e antigas da Ásia e da África, iatagans recurvados dos guerreiros sírios e árabes, espadas e punhais de aço de Damasco, escudos e elmos. A gente islamita figurava no museu pelos seus instrumentos de música civil e militar.

A China figurava na coleção do Museu de Dom Pedro II com esplêndidos exemplares das suas artes e indústrias. Antigas jarras de porcelanas, sedas, estátuas maiores e menores, religiosas ou simbólicas, objetos de marfim, bronze, madrepérola, bambu, sândalo, xarões em ricos lavores, pinturas em papel de arroz.

A história da civilização americana ocupava lugar destacado, desde os Incas até a época em que o Imperador foi banido. A antropologia americana merecia o carinho e o estudo do Imperador, representada por múmias em igaçabas, nas cabeças mumificadas pelo tempo e pela arte, ali havendo uma cabeça de guerreiro mumificada, tão reduzida que parecia de criança.

A galeria dos quadros de Dom Pedro II era uma pinacoteca valiosa. Neste ponto sentimos ainda não ter encontrado uma relação minuciosa, embora já a tenhamos feito, quase completa, desfalcada porém da documentação que seria de desejar. O cronista de cujos préstimos nos servimos no esboço destas linhas alude a um esplêndido quadro do pintor gaúcho Pedro Weingartner, pensionista de bolsinho do Imperador na Europa, cerca de 4 anos, intitulado "Direitos documentados"; três pastéis de Perigio, "No Banho", "Noite de Luar" e "Guerreiro Antigo"; outro quadro do mesmo autor, intitulado "O Judeu e a Filha". No museu figurava ainda um quadro da escola flamenga, cujo assunto não foi descrito, infelizmente. (Onde estão?).

Entre os objetos de arte era notado um porta-jóias de Boule; uma faca antiga, cuja lâmina de aço encravava-se em cabo de bronze cinzelado, representando duas figuras de braços entrelaçados a tocarem-se com os lábios. Era uma obra prima. Havia no museu duas bandeiras paraguaias tomadas na batalha de 24 de Maio - onde estarão hoje? Destacou o nosso informante a existência de uma espingarda de percussão central, com o cano de ouro e a inscrição: "Arsenal de Guerra da Corte, 1830".

Ao lado do museu existia a sala de D. Teresa Cristina, com duas estantes ostentando preciosidades literárias em português, francês, inglês e alemão... Nessa sala da Imperatriz não se viam quadros a óleo, apenas medalhões de cobre dourado, assuntos sacros, presente de Pio IX, e magníficos trabalhos feitos a buril. Na ante sala estavam dois quadros a óleo representando, no tamanho natural, D. Pedro e Dona Tereza em 1844. Junto destacava-se outro: pequena cópia do "Enterramento de Cristo", feito pela Princesa Isabel, aliás ótima desenhista e pintora, discípula de Mariano José de Almeida e que, na Exposição da Academia de Belas Artes, em 1867 apresentara, sem que o soubessem os visitantes, três belos quadros a óleo.

O leilão não atingiu ao terraço superior, espaçosa câmara, coberta e cercada de vidraças, onde existia uma luneta de alcance, de G. Dolond, daí posteriormente levada para a sala nº 19 onde não encontrou comprador, figurando no último lote do leilão final, onde foi vendida não sabemos por qual preço... O terraço foi apodrecendo, até que desapareceu. Sobre o balcão existia um relógio de sol, com disco de pedra. Outrora ali passaram sóis felizes! Nada mais existe: onde andará a luneta? Seguro, acabou espichada e inerte, fixando nas lentes baças um panorama pungente, de névoa e de morte!

Jamais encontramos informes ou inventário das preciosidades do Palácio de São Cristóvão, ambiente de tradições, de grandeza e de Arte, sacrário do belo Brasil Imperial, casa onde chegavam o pobre e o esbulhado para narrar ao chefe de Nação as suas desditas, - ambiente de onde partia o lenitivo e a esperança à viúva, ao desvalido, ao estudante, ao artista desprotegido.

Em São Cristóvão os bons tiveram advogado. Bondade, Beleza e Justiça lá se encontravam. O tesouro da bondade ofuscando o da Arte, pois neste terreno não se poderá comparar São Cristóvão aos grandes palácios reais europeus. São Cristóvão era grande, em Arte, relativamente às Américas. A casa do Imperador e o seu Museu não tinham paralelo com outro palácio do continente. Isto é o que se precisa dizer e será evidenciado à saciedade, quando aparecer inventário do que lá existiu...

A Quinta de São Cristóvão, posteriormente ao embelezamento paisagístico de Antônio Francisco Maria Glaziou, detalhado por Magalhães Correia no Correio da Manhã de 6 de outubro de 1935: possuía uma vegetação exuberante, "agrupamento de arvoredo, alamedas, lagos, rios, cascatas, grutas, oferecendo perspectivas extraordinárias em sua paisagem, não só de lençóis de verde gramado, como alamedas de palmeiras, sapucaias em tons variados, as tamarineiras, grupos de chichás, capões, toda a nossa vegetação tropical".

"Que mais poder-se-ia encontrar na Boa Vista? O leitor fará uma idéia? Diremos, no entanto: A imensa Quinta tinha, no Império, mais do dobro do tamanho que hoje possui. Suas ruas, no fundo e lateralmente eram numeradas, assim: rua Primeira, Nona, Beco da rua Sétima... Rua de Sant'Ana, Rua Custódio, Rua do Parque, Rua do Imperador, esta em frente ao Portão da Coroa.

Pois bem, no fundo da imensa Quinta, desde a época de D. João VI existiam casas que aquele soberano dera ou permitira que construíssem seus criados, viúvas e inválidos, enfim uma série de pessoas que protegia. Dom Pedro I continuara nesta benemerência; Dom Pedro II, do mesmo modo, dava a desvalidos e até a poetas e literatos casas nos fundos e lados do palácio... Por aforamento, concessão oficial ou doação, muitos eram os donos de seu cantinho na Quinta de São Cristóvão. Aos domingos, quem desejasse, lá podia passear, sem ter idéia de visitar amigos, fossem os da casa grande ou os das 160 casas menores.

Atrás do Paço, ficavam a abegoaria imperial, cavalariças e coudelarias. Ficava à Rua Sexta a Escola que o Imperador mantinha de seu bolsinho, de planta muito interessante (acha-se na Biblioteca Nacional), constituída de um prédio sobre o comprido; de um lado a seção de meninos e do outro a de meninas, com absoluta independência uma da outra. Lá, na rua Primeira, nº 2, havia uma casa de sobrado com 10 janelas de frente, solidamente construída e com vastas acomodações. Que era? O hospital da Quinta, destinado a abrigar serventuários doentes, ou os que fossem pedir ao Imperador cura dos seus males! A quanto iriam as esmolas do Imperador? Tão numerosas que a República Velha, muito penalizada, não achou outro meio senão mantê-las".

A respeito disso, o Governo Provisório fez um decreto em 19 de novembro de 1889, mantendo os benefícios, e explicando: "Considerando que o Snr. D. Pedro II pensionava de seu bolso a necessitados e enfermos, viúvas e órfãos, para muitos dos quais esse subsídio se tornava o único meio de subsistência e educação; Considerando que seria crueldade envolver na queda da monarquia o infortúnio de tantos desvalidos; Considerando a inconveniência de amargurar com esses sofrimentos imerecidos a fundação da República, Resolve: Os necessitados, enfermos, viúvas e órfãos pensionados pelo Imperador deposto continuarão a receber o mesmo subsídio..."

"Na última década do Império, - continua Marques dos Santos - por diversas vezes no Senado, tentaram votar créditos para reformas nos Paços Imperiais, que cheiravam a velho, com tanta coisa fora de moda, móveis de Jacarandá (?!), que deveriam ser renovados por outras belezas da marcenaria! Longe os trastes antigos! E se o próprio Imperador pintasse a barba, não ficaria também mais bonito? A todas as inovações dispendiosas ou inúteis resistia S.M!"

Uma vez que estamos abordando a casa do Imperador em São Cristóvão, diremos: aquelas coisas, ricas para uns, pobres e indigentes para outros, enfim, essas relíquias que hoje se compram a peso de ouro para museus e palácios, não interessavam, davam raiva aos cidadãos de 1890! Elas não envergonhavam o Imperador e menos o Brasil contemporâneo, daí a criação, pelo governo do Estado Novo, do Museu Imperial e de outros onde o Passado mostra aos brasileiros a sua grandeza e as suas responsabilidades. A cada cidadão cumpre manter a integridade de sua Pátria como a de suas relíquias".

2 comentários:

  1. Olá Eduardo. Gostei muito do seu post sobre os leilões do palácio de são cristóvão. Confesso que já sabia desses leilões, pois há alguns anos atrás li o artigo completo de Francisco Marques dos Santos, sobre esse mesmo assunto, em www.areliquia.com.br. E, como não poderia deixar de ser, fiquei embasbacado com o desprezo pela história nacional. Ultimamente, tenho tentado acessar esse texto novamente. Mas não consegui por vários motivos. Então, gostaria de pedir sua ajuda para acessar novamente esses textos afim de saber mais sobre os objetos vendidos no leilão. Por favor, envie-me algum email ou publique mais textos na íntegra sobre o assunto, pois isso tem perturbado minha cabeça.

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