No Império, implantou-se, a partir da Constituição de 1824, uma Monarquia Constitucional em terras tupiniquins. Havia três poderes que regiam a nação, tais como foram concebidos no século anterior por Montesquieu: Legislativo, Executivo e Judiciário. No entanto, Dom Pedro I instituiu ainda um quarto poder: o Poder Moderador, o qual deveria ser exercido pelo imperador no intuito de regular as relações entre os poderes e impedir trapaças e injustiças.
Na época, isso rendeu algumas chacotas, vindas da Inglaterra e de alguns grupos políticos que apelidaram nosso governo de “parlamentarismo às avessas”. Riam-se da interferência considerada demasiada do imperador em assuntos que competiam a outros poderes. Jocosidades à parte, já no governo de Dom Pedro II, o exercício do Poder Moderador se dava de forma interessante, em especial no que toca às nomeações de ministros, governadores de províncias e outros cargos.
Sempre que traziam indicações de nomes selecionados pelos eminentes senadores do império, D. Pedro observava um a um e passava a colher informações sobre cada candidato a fim de verificar se não teria um passado maculado por qualquer tipo de corrupção. Havendo indícios, ou seja, mesmo sem provas diretas dos fatos, o imperador, como medida cautelar, sublinhava os nomes suspeitos com um lápis azul, excluindo qualquer possibilidade de ocupação de cargo público por alguém desonesto.
Rui Barbosa, ferrenho defensor da República e Ministro da Fazenda do governo do Marechal Deodoro da Fonseca, anos após a derrubada do regime monárquico se lamentaria de ter defendido e lutado pela República, afirmando que o Império era uma “escola de estadistas”, enquanto a República se tornara uma “praça de negócios”.
De lá para cá, o mundo mudou, mas a “herança mercantil” da República “onde tudo se negocia”, permaneceu. Assistimos ao comércio de ideologias, projetos e até mesmo de valores. Vivemos em tempo de “panpartidarismo”, onde já não se consegue definir o que é esquerda ou direita. Cristalizou-se a mesma confusão do início da República e, nesse quesito ela deve ser elogiada, porque é sempre coerente: começou negociando tudo e segue fazendo o mesmo até hoje.
Ética, moral, honra, são palavras gastas pela profanação que sofrem constantemente. E seguirão sofrendo, porque ventos contrários sopram contra o Brasil, em especial depois da recente aprovação do Decreto 8.243, vindo a lume no último dia 23 de maio e no qual a presidente cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), supostos instrumentos para proporcionar e estender a participação direta dos cidadãos e grupos sociais nas decisões de governo.
Aparentemente o projeto seria uma resposta às manifestações ocorridas no meio do ano passado, porém, na prática é uma ação que viola o sistema democrático de governo implementado pela Constituição de 1988. O pior disso tudo é que esses projetos acabarão (se o decreto for acolhido pelo STJ) por amplificar a voz de grupos sociais e organizações subvencionadas pelo próprio partido da presidente e de também de outros partidos e grupos afinados com suas propostas.
Legislar por decreto não é algo novo, aliás, o velho discurso de que os movimentos sociais “são os legítimos representantes dos interesses do povo” fazem parte da cartilha bolchevique tão apreciada em nossos “democráticos” vizinhos latino-americanos, como a Venezuela e a Bolívia.
Que nomes de nossa política o lápis azul de Dom Pedro II riscaria hoje? Restaria alguém? A retidão do imperador brasileiro sirva de exemplo a nós cidadãos. D. Pedro, embora caluniado como “absolutista”, era tão democrático que permitiu que falassem abertamente contra ele e que contestassem publicamente suas decisões, a ponto de se chegar à derrubada da monarquia.
Ofereceram-lhe a possibilidade de matar os revoltosos, mas ele se recusou e resignou-se para não derramar sangue brasileiro. Hoje o que se diz democrático, age de forma absoluta e o que se pensava no passado, ser absoluto, agia democraticamente. A dialética da História nos ensina a distinguir bem as coisas.
Luiz Raphael Tonon, professor de História e Filosofia, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas.
Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 18/07/2014, Página A2 – Opinião.
Imagem: Pedro II aos 49 anos de idade, 1875, de Delfim da Câmara (scan de Museu Histórico Nacional, Coleção Museus Brasileiros, edição Banco Safra).
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