Orçamento taxava dono de escravo e previa salário para Pedro II
Fazia tempo que os brasileiros não pronunciavam tanto a expressão “Orçamento federal”. Nos primeiros meses de 2016, as discussões foram sobre as mudanças que a então presidente Dilma Rousseff fez no Orçamento sem pedir a autorização do Congresso — uma das acusações que levaram ao impeachment. Hoje, o bate-boca nacional é motivado pela proposta do presidente Michel Temer de criar um teto para os gastos do governo pelos próximos 20 anos.
Embora só agora aguce alguma curiosidade popular, o Orçamento nacional existe há cerca de 190 anos. É quase tão antigo quanto o Brasil independente.
Foi a Constituição do Império, a primeira do país, de 1824, que obrigou o governo a criar e submeter à Câmara e ao Senado uma planilha contendo, de um lado, a previsão do dinheiro que será arrecadado com impostos ao longo do ano e, do outro, a previsão de como essa arrecadação será investida na máquina estatal e nas ações públicas, como iluminação e segurança.
Na coluna dos tributos que abasteciam os cofres do Império, estava a taxa dos escravos. O valor que o fisco cobrava dos proprietários variava conforme a localidade. Em 1867, a taxa anual era de 10 mil-réis por escravo na cidade do Rio, 8 mil-réis nas capitais das províncias e 4 mil-réis nas vilas e povoações. Para coibir a sonegação, a Coroa criou a matrícula geral dos escravos. Os proprietários que não faziam o registro ficavam sujeitos a uma multa de 200 mil-réis.
Os cofres públicos recebiam um pedágio cobrado por todo cavalo e besta que entrava na capital do Império para ser vendido. Os brasileiros só podiam receber distinções honoríficas de governos estrangeiros, como o título de comendador concedido pelo Vaticano, se pagassem uma taxa à Coroa.
Particularmente pesados eram os tributos de importação de pólvora, chá e “bebidas espirituosas” (alcoólicas). Em 1843, as alíquotas desses produtos ficavam em torno de 50%.
Ajudavam a financiar o Império o imposto das apostas e dos prêmios de loteria, o tributo das passagens dos bondes do Rio e a taxa de matrícula das faculdades de direito e medicina. O Colégio Pedro II, hoje gratuito, cobrava dos alunos pensões trimestrais, remetidas para o caixa da Coroa.
O lucro das empresas estatais, como a Fábrica da Pólvora, o Correio Geral, os Telégrafos Elétricos e a Estrada de Ferro D. Pedro II, reforçava o cofre imperial.
A outra coluna do Orçamento, a das despesas, trazia as verbas destinadas a uma série de instituições, como o Presídio da Ilha de Fernando de Noronha, o Jardim Botânico, o Passeio Público, o Museu Nacional, a Academia de Belas Artes, a Biblioteca Pública, o Asilo dos Meninos Desvalidos, o Instituto dos Meninos Cegos, o Hospital dos Lázaros (destinado aos leprosos) e o Observatório Astronômico (criado por Pedro II para seu uso particular no telhado do Paço de São Cristóvão).
De todos esses estabelecimentos, apenas o presídio estava fora do Rio. A corte, como se vê, era desbragadamente privilegiada na distribuição dos recursos.
Como o catolicismo era a religião oficial do Brasil, os salários dos padres e a conservação das igrejas eram pagos pelos contribuintes do Império e constavam do Orçamento. O governo também cobria as despesas com a “civilização e catequese dos indígenas” e a educação dos “ingênuos” (filhos de escravos que já nasciam livres).
O Orçamento de 1867 previu 10 contos de réis para a continuidade da elaboração de Flora Brasiliensis, um monumental inventário das plantas nacionais, com mais de 10 mil páginas ilustradas, preparado ao longo de sete décadas por naturalistas austríacos e alemães.
Das tantas cifras elencadas na coluna das despesas, a primeira era invariavelmente a “dotação de sua majestade o imperador”. Segundo um decreto de 1840, esses recursos eram “destinados para todas as despesas de sua imperial casa, reparos de palácios e quintas, serviço e decoro do trono; não compreendendo, porém, as despesas da Capela Imperial, da Biblioteca Pública e das aquisições e construções de palácios que a nação julgar conveniente para a decência e o recreio do imperador e sua augusta família”.
O decreto, no entanto, não era seguido ao pé da letra. O soberano usava boa parte da quantia para pagar os estudos de crianças pobres e financiar artistas como o maestro Carlos Gomes.
A soma destinada a Pedro II permaneceu congelada durante as cinco décadas de seu reinado: 800 contos de réis. Apesar de a arrecadação ter se multiplicado por dez entre 1840 e 1889, ele jamais permitiu que os parlamentares reajustassem a cifra. Isso ajuda a explicar por que viajantes estrangeiros se horrorizavam com a frugalidade do imperador e os palácios caindo aos pedaços.
Imposto do selo
No Império, tal qual ocorre hoje, o governo tinha que preparar uma proposta de Orçamento e submetê-la aos deputados e senadores. Com a aprovação, o Orçamento virava lei e o dinheiro começava a pingar nas repartições públicas de todo o país.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, permitem saber como se davam as discussões das propostas orçamentárias no Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, no Rio. Os senadores por vezes se exaltavam. Para alguns, o que a Coroa fazia era meter a mão cada vez mais fundo no bolso dos brasileiros.
Em setembro de 1843, o ministro da Fazenda, Joaquim Francisco Vianna, defendeu a arrecadação imperial perante os senadores:
— Senhores, até mesmo os homens mais desafetos à atual administração não podem deixar de concordar que existe um deficit [nas contas públicas]. Se existe, qual é o meio de preenchê-lo?
— O primeiro é a economia — retrucou, em tom de desafio, o senador Costa Ferreira (MA).
— Sendo o deficit permanente, não pode ser preenchido senão por meio da criação de impostos. Mas o nobre senador deu a entender que o governo não tem feito economias. Eu declaro ao Senado que o governo tem feito todas as economias possíveis. Se não tem feito, peço que me mostrem as despesas inúteis ou desperdícios — argumentou o ministro.
O senador Holanda Cavalcanti (PE), que anos antes fora ministro da Fazenda, apoiou o representante do imperador:
— A diminuição de despesa que se quer não seria economia. Seria o pior presente que se poderia fazer ao país. Se algum desses senhores que propõem tais economias dirigissem a nau do Estado, veriam que a despesa não é excessiva. É necessário ver as nossas necessidades, e elas são grandes. Não é grande, porém, a despesa. Grande é a fraude que se derrama por toda parte, quer na despesa, quer na receita.
Na mesma sessão, o senador Paula Souza (SP) direcionou seus ataques ao imposto do selo. Todo documento jurídico ou comercial — como os processos judiciais, os contratos de compra e venda e as certidões de batismo, casamento e óbito — precisava ostentar uma estampilha adesiva produzida pela Coroa. O selo tinha que ser renovado todo ano, com o pagamento do respectivo imposto. Para o senador, era um custo que afugentava os investidores.
— Em um país como o Brasil, onde as transações comerciais começam, onde a indústria é nascente e onde há poucos capitais e convém chamá-los, o imposto do selo deveria ser aquele que em último lugar se houvesse de escolher, para não paralisar o comércio e a indústria, para não obstar o desenvolvimento da riqueza pública.
Os argumentos não convenceram. O famigerado selo não apenas permaneceu, como ficou mais caro ao longo dos anos e na República ganhou versões estaduais. Seria abolido só em 1966.
IPT imperial
Ainda em 1843, o senador Paula Souza se queixou do “excesso horroroso de despesa” previsto no Orçamento. Ele se referiu aos 54 contos de réis das “ajudas de custo de vinda e volta dos deputados”. Não havia dotação semelhante para os senadores.
— Onde se viu que se dessem ajudas de custo de ida e volta a deputados que nunca saíram do Rio de Janeiro? Pois todos têm tido, até das antigas legislaturas, até suplentes de alguns dias. Vejam-se quantos contos de réis dissipados.
O consultor aposentado do Senado James Giacomoni, autor do livro Orçamento Público (Editora Atlas), explica que a Monarquia brasileira compreendeu logo a importância de o Orçamento passar pelo crivo do Poder Legislativo:
— O imperador não podia criar tributos e gastar a seu bel-prazer. Ao Parlamento cabia fazer uma crítica prévia dos tributos e dos gastos. Era essa colaboração entre o Executivo e o Legislativo que tornava o Orçamento legítimo.
A proposta era discutida primeiramente na Câmara e depois no Senado, votada pela Assembleia Geral (a reunião das duas Casas) e sancionada pelo imperador. Hoje é ligeiramente diferente. O projeto orçamentário não passa mais pela Câmara e pelo Senado separadamente. É debatido por deputados e senadores na Comissão Mista de Orçamento, votado pelo Congresso Nacional e assinado pelo presidente da República.
No passado, o calendário orçamentário do Brasil começava em julho e terminava em junho do ano seguinte. Trata-se provavelmente de uma influência dos Estados Unidos, que na época adotavam o mesmo ano fiscal. Desde 1888, a lei orçamentária brasileira coincide com o ano civil, vigorando de janeiro a dezembro. Neste momento, a proposta do governo para 2017 está na Comissão Mista de Orçamento, e os parlamentares devem votá-la no Plenário do Congresso até o dia 22.
Existe outra diferença importante entre o passado e o presente. Atualmente, os projetos de Orçamento só podem conter tributos e alíquotas já existentes. No Império, eram os próprios Orçamentos que criavam e reajustavam os impostos.
Pelo Orçamento de 1843, o governo duplicou tanto a taxa de matrícula das faculdades de direito e medicina quanto o tributo anual das “casas de leilão e de modas”. O Orçamento de 1867 instituiu um rudimento de IPTU, no valor de 3% do “valor locativo”, cobrado do morador de cada “casa de habitação arrendada ou própria”.
Planilha capenga
Foi o artigo 172 da Constituição de 1824 que tornou o Orçamento anual obrigatório. A determinação constitucional, porém, demorou para sair do papel. Nos primeiros anos, as propostas que o Ministério da Fazenda enviou para a Câmara e o Senado foram capengas. Faltava a previsão de receitas e gastos de muitas províncias. Os transportes eram lentos e precários, e as planilhas, que eram despachadas de todos os cantos do Império em cavalos ou navios a vapor, por vezes só chegavam à corte depois que o prazo para a votação já havia se esgotado. Além disso, os burocratas ainda não tinham cultura financeira e não sabiam exatamente quais dados deveriam pôr nos balanços.
Na fala do trono da abertura do ano legislativo de 1827, no Senado, Pedro I disse aos deputados e senadores que era perigoso não ter controle sobre quanto o país arrecadava e gastava:
— Um sistema de finanças bem organizado deverá ser o vosso particular cuidado nesta sessão [ano legislativo], pois o atual, como vereis no relatório do ministro da Fazenda, não é só mau, mas é péssimo, e dá lugar a toda qualidade de dilapidações.
Após estudar os números enviados pelo ministro, os deputados e senadores concluíram que não passavam de um “amálgama de algarismos” sem pé nem cabeça. Os dados disponíveis em 1827 foram suficientes para aprovar só o Orçamento da corte e da província do Rio de Janeiro.
O Orçamento imperial tampouco foi aprovado em 1828, o que levou Pedro I a dar um puxão de orelha nos parlamentares na fala do trono que encerrou o ano:
— Bastantes foram os atos legislativos desta sessão, contudo os negócios de fazenda não foram tomados na devida consideração. Espero ver o tempo da próxima futura sessão sabiamente aproveitado.
O pedido, de novo, não foi atendido. A Assembleia Geral só aprovaria o primeiro Orçamento do Brasil em dezembro de 1830, para o ano fiscal iniciado em julho de 1831. A conta fechou no azul, com a receita maior do que a despesa. Foi uma exceção. Dos 60 Orçamentos imperiais, 42 foram deficitários.
Os primeiros Orçamentos do Brasil eram quase simplórios. Tinham não mais do que 30 páginas. Não era necessário mais do que isso. O governo se compunha de apenas seis ministérios, e os gastos com o país eram baixos. Com o tempo, a máquina estatal cresceu e o poder público assumiu novas missões, como oferecer saúde e educação gratuitas, programas de transferência de renda e incentivos fiscais para dinamizar a economia. Isso explica por que o Orçamento que o Congresso estuda neste momento tem 3,5 mil páginas.
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