Pesquisador Paulo Rezzutti resgata cartas da Imperatriz em biografia
que renega imagem de esposa obediente
Esqueça a frágil e conformada mulher traída, esqueça a figura insossa – e quase sonsa – atribuída à primeira imperatriz do Brasil, d. Leopoldina. Esqueça a personagem que aparece na novela das seis da Globo, Novo Mundo. No recém-lançado D. Leopoldina: A História Não Contada – A Mulher Que Arquitetou a Independência do Brasil, o escritor e pesquisador Paulo Rezzutti se apoia em documentos inéditos para fazer justiça à austríaca que, há 200 anos, em novembro de 1817, desembarcou no Rio para se juntar ao marido – com quem havia se casado por procuração –, d. Pedro. Ela tinha 20 anos. Ele, 19.
Arquiduquesa da rica casa austríaca de Habsburgo, Leopoldina era uma mulher culta, preparada, esclarecida. E decidida. Veio para o Brasil com a missão, como soía acontecer na época, de fortalecer os laços de poder de sua família. Mas se apaixonou por d. Pedro – e pela nação brasileira. Rezzutti reproduz escritos inéditos da condessa Maria Ana von Kühnburg, a Nanny, dama de companhia da arquiduquesa que mantinha um diário e costumava escrever cartas ao pai e à melhor amiga. “Por fim o príncipe d. Pedro, marido da nossa princesa: ele tem uma bela fisionomia, é ainda melhor que seu retrato, belíssimo homem”, escreveu ela, sobre o primeiro encontro com o futuro imperador, ainda no navio que as trouxeram da Europa.
Calejado por revirar arquivos e com bom faro para encontrar documentações inéditas – é dele o livro Titília e o Demonão, que publica uma das maiores descobertas de documentos da nossa história: 94 cartas inéditas de d. Pedro à sua principal amante, a Marquesa de Santos –, Rezzutti procurou pelos escritos completos de Nanny em instituições, coleções e museus europeus, sem sucesso. Acabou encontrando tudo em São Paulo, no Instituto Hercule Florence.
Claro que a estes relatos se somam muitos outros, em sua extensa pesquisa. Sua análise das cartas da própria Leopoldina revela as diversas facetas da nobre: ao pai, Francisco, o último imperador do Sacro-Império Romano-Germânico, era a filha obediente; a d. João VI, se apresentava como nora grata e súdita fiel; ao marido, vestia a máscara da cônjuge dócil e apaixonada; à irmã Maria Luísa, segunda mulher de Napoleão Bonaparte, ensaiava apresentar mais seus pensamentos: a consciência dos problemas do Brasil e o empenho em defender as ideias de d. Pedro.
Mas era a seus vassalos, principalmente os de origem germânica – como seu secretário particular Jorge von Schäffer –, que ela demonstrava sua “resoluta e destemida face”, como frisa o livro de Rezzutti, quando a apresenta justamente como “a matriarca da Independência”. A partir de 1821, as missivas assinadas por ela passam a fazer distinções entre os brasileiros e os portugueses. “Sua tendência em pender para o lado do Brasil contra Portugal aparece ora nas entrelinhas, ora de forma explícita”, pontua o livro.
E assim Rezzutti mostra como, quase um mês antes do célebre Dia do Fico – em que o então príncipe-regente d. Pedro, em 9 de janeiro de 1822, decidiu contrariar ordens do pai e ficar no Brasil –, houve um “dia do fico” protagonizado por Leopoldina. Grávida de sete meses da princesa Januária, alternando “entre choros e ameaças”, fez com que o marido concordasse que não voltariam à Europa antes do nascimento da criança.
Em carta a Schäffer, ela confidenciava que d. Pedro “estava mais bem disposto para os brasileiros do que eu esperava – mas é necessário que algumas pessoas o influenciem mais, pois não está tão positivamente decidido quanto eu desejaria”. Era preciso “mesmo indo contra as tropas portuguesas, ou seja, usando de força bruta, fazer com que d. Pedro continuasse no Brasil”. “Caso isso não ocorresse, ‘tudo então estaria perdido’. Ou seja, o ‘fico’ dela foi anterior ao do marido”, comenta o livro. Os registros revelam que ela tinha acesso a informações privilegiadas sobre os bastidores da política nacional.
Um mês antes da Independência ser proclamada por seu marido, Leopoldina escrevia para sua irmã: “O Brasil é grande demais, poderoso e, conhecendo sua força política, incapaz de ser colônia de uma corte pequena, por isso custará muitas lutas duras e sangrentas. E, como me parece, pelo que meu humilde entendimento permite, o ódio dos europeus contra o Brasil é tão grande que terminará com o extermínio dos primeiros”.
Ao pai, em outra missiva também de agosto de 1822, ela chama Portugal de “pátria-mãe infiel” e ressalta que “o nobre espírito do povo brasileiro se mostrou de todas as formas possíveis e seria a maior ingratidão e erro político crassíssimo se nosso empenho não fosse manter e fomentar a sensata liberdade e consciência de força e grandeza deste lindo e próspero reino, que nunca poderá ser subjugado pela Europa”. Leopoldina ainda pede apoio. “Estou convicta, querido pai, como deseja tudo o que é nobre e bom, de que o senhor nos apoiará na medida do possível e com toda a força e poder possível”, escreve.
Simbolicamente, aliás, é possível afirmar que, quando Brasil declarou-se independente de Portugal, quem estava no comando era Leopoldina, e não Pedro, que, em viagem a São Paulo – daí, é claro, “às margens do Ipiranga” –, nomeou a mulher para ocupar a regência em sua ausência. “É romântico imaginar a princesa assinando a Independência do Brasil, porém tal fato, mediante o decreto expedido, é inimaginável e historicamente incorreto”, ressalva Rezzutti, contudo.
“O poder da princesa era limitado, e o que ela decidisse teria que passar pela aprovação do marido.”
As quase 500 páginas de D. Leopoldina podem ser facilmente – e prazerosamente – vencidas por quem gosta de história do Brasil. Não a história consolidada, resumida e simplificada que se aprende nos bancos escolares, mas a história revisitada e redescoberta, esta que tem sido publicada em bons livros nos últimos anos. Do próprio Rezzutti, este se soma a uma bibliografia que já conta com as biografias D. Pedro – A História Não Contada: O Homem Revelado Por Cartas e Documentos Inéditos e Domitila: A Verdeira História da Marquesa de Santos.
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