sábado, 4 de março de 2017

A HEREDITARIEDADE MONÁRQUICA


Os republicanos não compreendem as razões da hereditariedade monárquica, o que não admira, pois está nessa incompreensão o motivo, pode dizer-se único, do seu republicanismo.

O fato curioso é que eles a suponham uma velharia, um processo obsoleto, quando ela, afinal, proveio de uma inovação e correção ao antigo costume eletivo.

Expliquemo-nos. Nas sociedades primitivas, ao despontar o sentimento nacional, os chefes naturais, chefes de famílias ou tribos, escolheram ou elegeram dentre eles o chefe comum, ante a premente necessidade de uma chefia geral unificante. A eleição fez-se vitalícia à imagem das chefias naturais subalternas. É de notar como nesta fase se marca a transição indefinida entre as duas formas: república vitalícia, monarquia eletiva.

As primeiras monarquias foram, pois, eletivas, tais como as monarquias visigóticas e ainda as dos reinos das Astúrias e de Navarra. Mas desde cedo se verificou nelas o seu ponto fraco e perigoso: o da substituição do rei, por falecimento ou incapacidade deste.

Esse ponto assinalava sempre um período grave e agitado, de divisões e de lutas entre os candidatos à sucessão secundados pelos grupos dos seus adeptos.

O enfraquecimento e a perigosa ameaça de desagregação em face das rivalidades, agravando-se pelas cobiças dos povos vizinhos, punha em causa a sobrevivência dessas pátrias incipientes. Temerosos de alguns exemplos sucedidos, acordaram os responsáveis na conveniência de escolher com antecedência o futuro sucessor, ainda em vida do monarca. Aproveitava-se a autoridade e o conselho deste, ora como elemento valioso de moderação, de disciplina e de respeito, ora como autorizada contribuição ao acerto na escolha do futuro soberano.

Mas, apesar disso, o mal da escolha continuava. A competição apresentava-se como legítima e inevitável, porque os vários candidatos propunham-se com iguais direitos e com indicações semelhantes de elegibilidade.

Na emulação estabelecida não era possível impedir os dissídios, as cisões, os ódios, as retaliações, germens perigosos de desagregação nacional.

Para obstar aos estragos intrínsecos da eleição, apenas uma hipótese: a de se encontrar um candidato que reunisse condições de exceção, condições únicas sobre os demais, que o colocassem desde logo fora e acima da competição.

Nessa situação de exceção ou de privilégio encontrava-se, por via de regra, apenas o filho do monarca reinante.

O fato da sua ascendência, que lhe emprestava prestígio, da sua preparação, familiarizado que estava com os problemas da governação, das relações criadas, da predileção paterna, enfim o consenso geral, davam-lhe compreensível preferência.

E foi assim, espontaneamente, naturalmente, evolucionando, melhorando, que se entrou no governo hereditário.

Eliminadas que foram, por via da hereditariedade, as causas funestas de desunião, encontravam-se cumulativamente outras vantagens: a da continuidade e a da educação apropriada dos chefes governantes.

Se o governo vitalício fora já um imperativo de conveniência nacional, a transmissão hereditária acrescentou-se-lhe como utilíssimo aperfeiçoamento. Ela exprime o resultado final da evolução empírica e progressiva do princípio eletivo.

Porque a Realeza foi uma emenda e um avanço — um inteligente avanço! — à primitiva forma eleitoral, temos ou não temos inteira razão em dizer que o preconceito republicano da escolha tem o significado de um retrocesso?

Já estamos a ouvir a contradita: Como compreender então a preferência do mundo moderno pelas formas republicanas? Como interpretar a queda das monarquias nos últimos tempos e a consequente passagem às repúblicas, não é?

O fenômeno tem realmente servido de argumento, mas nada depõe, na verdade, contra as razões dos princípios monárquicos e os resultados obtidos com as mudanças, esses... ainda menos.

Se a evolução até à hereditariedade se processou, como vimos, empiricamente, isto é, por correções e ajustamentos em face das realidades vividas, o regresso brusco e generalizado às formas eletivas, pelo contrário, não teve qualquer justificação prática. Aconteceu apenas na lógica da ideologia individualista que caracterizou o Século XIX.

Foram teorias pensadas em abstrato, alheias às realidades humanas, como as da igualdade absoluta, da liberdade ilimitada, da preconcebida onisciência do eleitorado soberano, invenções de certos filósofos visionários, que levaram a romper com as regras sabiamente construídas e sobejamente comprovadas ao longo de muitos séculos de vida social.

Mas proclamava-se a igualdade e a invocação era aliciante porque, fantasiando o que se deseja, há de sempre medir-se o mito da igualdade por cima. Os indivíduos de baixo e de médio nível (a maioria) logo idealizaram que a prática da igualdade consistiria em poderem subir e igualar-se aos socialmente superiores (a minoria). Não esteve nos seus cálculos a impossibilidade, por desigualdade natural de faculdades, de todos ascenderem ao mesmo plano, como também não esteve o da nivelação por baixo, que algumas sociedades penosamente experimentaram. Todavia a ilusão era agradável à maioria e, numa política onde prevalecia o número (a maioria do voto), a ilusão triunfou e fez-se sistema.

O conceito teórico da igualdade, tendo transformado cada cidadão num presidente em potência, não podia admitir, como é óbvio, a Realeza hereditária. E foi assim, por simples coerência com uma ficção, que não por qualquer motivo em desabono das instituições dinásticas, que muitos povos baniram as monarquias em que nasceram e se engrandeceram.

O que interessa averiguar agora, como contraprova, é se esses povos e essas nações lucraram ou perderam com a mudança; se progrediram ou se não retrogradaram. Aí se encontrarão as razões de preferência pelos regimes e não na sua contagem numérica.

A saúde não deixaria de ser um bem ainda que deixasse de existir, pelo motivo de todos adoecerem..."

Sétimo capítulo do livro "Razões Reais" de Mário Saraiva.

Na imagem: Três gerações de uma dinastia: S.M. o rei dos Países Baixos, S.A.R. a princesa Beatrix dos Países Baixos e S.A.R. a princesa de Orange.

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