Algumas histórias nascem ninguém sabe como. Quando nos damos conta, elas viram causos, passados adiante como se fossem verdade. Isso acontece entre amigos, no interior das famílias e também… na história do Brasil. Quer um exemplo?
Muita gente conta como Rui Barbosa, um dos políticos mais importantes da história do país, destruiu os documentos da escravidão logo após a proclamação da República em 1889.
Há uma tradição historiográfica que remonta a Nina Rodrigues, que responsabiliza Rui Barbosa por uma ordem que teria como resultado a queima dos documentos relativos à escravidão, em poder de repartições públicas submetidas à autoridade do ministério da Fazenda, logo após a proclamação da República e, também, da abolição da escravidão.
Rui foi ministro da Fazenda ao longo do governo provisório de Deodoro da Fonseca, isto é, de 1889 a 1891. É de seu tempo a crise financeira do encilhamento, bolha inflacionária que marcou o início de nossa era republicana. A ordem para a destruição de documentos da escravidão teria sido dada por Rui, na qualidade e autoridade de ministro, em despacho datado de 14 de dezembro de 1890, e cumprido por intermédio de circular, datada de 13 de maio de 1891. À época da circular Rui já não era mais o chefe da pasta da Fazenda; o executor da ordem fora seu sucessor, Tristão de Alencar Araripe.
Aproveitando-se do cargo de ministro da Fazenda, ele teria mandado queimar esses documentos, supostamente para acabar com esta “mancha negra” da História do Brasil. Isto é contado como um grande absurdo, como se Rui Barbosa quisesse apagar o passado do país.
Nada mais errado. É verdade que Rui Barbosa mandou queimar documentos sobre a escravidão, mas não para destruir os traços das vidas dos escravos.
Em 14 de dezembro de 1890, o ministro da Fazenda, Rui Barbosa assinou um despacho ordenando a destruição de documentos referentes à escravidão.
O Estado de 19 de dezembro de 1890 publicou trechos da ordem, que pedia que os registros sobre servidão fossem enviados para a capital, onde se procederia a "queima e destruição imediata deles".
No documento, o político chamava a escravidão de "instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade e infeccionou-lhe a atmosfera moral ". E, dizia que a república era "obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que a abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira."
Ele fez isso porque, quando os escravos foram libertados no Brasil, em 13 de maio de 1888, a lei estabeleceu que os antigos senhores não seriam indenizados, ou seja, não receberiam nenhuma recompensa pelo fato de estarem sendo obrigados a libertar seus escravos. Afinal, em pleno fim do século 19, era um absurdo achar que uma pessoa pudesse ser dona de outra pessoa!
Acontece que os senhores dos escravos não aceitaram tão facilmente essa decisão. Se dependesse deles, continuavam a ter escravos! E exigiam ser recompensados pela perda.
Já Rui Barbosa achava o contrário: se alguém tivesse que ser indenizado, seriam os ex-escravos, que haviam trabalhado a vida inteira sem receber nada. E foi o que ele disse aos senhores.
Esse assunto, a queima dos arquivos, foi esgotado em estudo de Américo Jacobina Lacombe, que argumentou em favor da memória do advogado, jornalista e político baiano. Gilberto Freyre, ao que consta, também teria imputado a Rui a responsabilidade pela queima desses documentos, cuja destruição teria desprezado a memória nacional. Porém, há algo mais em jogo nesse enigma de nossa historiografia. A queima dos arquivos da escravidão, trata-se, na sempre feliz expressão de Lacombe, de uma pedra de escândalo em nossa história cultural.
A quais documentos se refere? Eram livros de matrícula, de controle aduaneiro e de recolhimento de tributos, que se encontravam nas repartições do ministério da Fazenda. Qual a importância desses documentos? Eram “comprovantes de natureza fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores de escravos para pleitear a indenização junto ao governo da República”. Havia um grupo de escravocratas, que se identificava como o grupo dos indenezistas, e que pretendia receber do governo republicano uma indenização pela perda dos escravos, e das respectivas rendas, hipotecas e garantias, cuja causa fora a abolição dessa instituição hedionda e execrável.
Mas os antigos proprietários não descansavam e continuavam a reclamar. Então, para acabar com a discussão, Rui Barbosa mandou queimar os documentos que comprovassem a quem tinha pertencido cada escravo. E foi o que aconteceu: no dia 13 de maio de 1891, para comemorar os dois anos da abolição da escravidão no Brasil, foi feita uma grande fogueira no centro do Rio de Janeiro. Foi uma festa e tanto, com a presença de vários líderes abolicionistas.
Assim, Rui Barbosa evitou que os antigos senhores de escravos, depois de terem usufruído por anos e anos de trabalho de graça das pessoas que mantinham em cativeiro, ainda recebessem dinheiro pelo fato de tê-los libertado.
Não se pode acusar Rui de alguma conivência com esse grupo. Quando ministro da fazenda Rui negou pedido de indenização, em passagem memorável de sua biografia. Conta-se que um grupo de escravocratas indenezistas teria requerido subvenção do governo para um banco encarregado de indenizar ex-proprietários de escravos e seus herdeiros “dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio de 1888”. A resposta de Rui fora seca, direta e feliz:
“Mais justo seria e melhor se consultaria o sentimento nacional se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos não onerando o tesouro”;
a resposta é de 11 de novembro de 1890, e valeu a Rui um diploma emblemático oferecido pela Confederação Abolicionista, que ainda funcionava.
A queima dos arquivos, nessa perspectiva, ainda que à época supostamente justificada pela necessidade de apagarmos os resquícios de nódoa terrível de nossa história, teve como causa uma justificativa instrumental: privar os escravocratas da instrução necessária de processos indenizatórios. Rui teria como objetivo preservar ao Tesouro, minar uma litigância que se avizinhava, bem como (talvez) colher elogios por atitude que à época era qualificada como liberal e humanitária. Simbolismo e gestos libertários estavam em voga, justamente por que nada fazíamos para resolver efetivamente o problema da escravidão proscrita, isto é, educando, protegendo, qualificando, albergando e libertando de fato (e não apenas de direito) o beneficiário da Lei Áurea.
Rui é criticado por ter ordenado a destruição de documentos preciosos. Nesse sentido, Rui diminuiu nossas possibilidades de contato com uma realidade histórica que nos explica. Por outro lado, sua ordem também é justificada pelo contexto no qual vivia, quando a ameaça reacionária era constante. Com o benefício do retrospecto, o culpamos por nos privar de documentação histórica irrecuperável. Porém, esse dedo em riste não leva em conta o tempo no qual Rui viveu, seus propósitos, e nem mesmo sua trajetória em favor do abolicionismo. E se o culpamos pela destruição de documentos cuja falta de preservação nos afeta, fazemos de documentos fins em si mesmos: não estaríamos pensando e escrevendo a história.
Oposição à destruição. Em 20 de dezembro de 1890, uma moção de apoio ao despacho de RuI Barbosa foi votada e aprovada no Congresso Nacional. Mas, não sem oposição. Representantes de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul se colocaram contra o despacho. A edição de 23 de dezembro do Estado trouxe mais detalhes sobre a sessão.
A nota contava que o deputado Francisco Coelho Duarte Badaró (MG) registrou seu protesto contra a queima de todo arquivo da escravidão no Brasil. Após colocar a ressalva que não se pronunciava contra a "obra meritória da abolição" mas contra a destruição dos documentos, disse: "não devemos fazer o papel de iconoclastas, devemos ter um arquivo".
"A nossa vida é nova, mas precisamos ter a nossa história escrita com provas verdadeiras. Pelo fato de mandar queimar grande número de documentos para a história do Brasil, a vergonha nunca desaparecerá, nunca se poderão apagar da nossa história os vestígios da escravidão", continuou o deputado.
Na edição de 21 de dezembro de 1890 o Estado publicou na sua capa uma crítica à ordem de Ruy Barbosa. Ela questionava o direito de um ministro sobre o destino dos documentos que "mais do que aos arquivos das repartições, pertencem à história"
Nem tudo, porém, foi destruído. Aliás, quase nada. Há ainda milhares de documentos sobre a escravidão nos arquivos, usados pelos historiadores para escrever a história deste passado impossível de esquecer.
Rui Barbosa apoiou o golpe republicano que destituiu a monarquia, porem, se arrependeu anos mais tarde.
(REFERENCIAS)
ACERVO ESTADÃO
Lacombe, Américo Jacobina, Silva, Eduardo e Barbosa, Francisco de Assis, Rui Barbosa e a queima dos arquivos, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1988.
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