terça-feira, 16 de junho de 2015

DOM PEDRO II, A LUZ DO BAILE

O QUE NOS FALTA

Não farei um texto novo, mas sim mostrarei algo de alguém que viveu o Império e a república... Esse alguém se chama Monteiro Lobato.


"A Luz do Baile


Despercebidos de todo passaram-se este mês dois aniversários. A 2
de dezembro nasceu, a 5 de dezembro faleceu D. Pedro II. Quem foi
este homem que não deixou lembranças neste país? Apenas um
Imperador… Um Imperador que reinou apenas durante 58 anos…
Tirano? Despótico? Equiparável a qualquer facínora coroado? Não.

Apenas a Marco Aurélio.

A velha dinastia bragantina alcançou com ele esse apogeu de valor
mental e moral que já brilhou em Roma, na família Antonina, com o
advento de Marco Aurélio. Só lá, nesse período feliz da vida romana,
é que se nos depara o sósia moral de Pedro II.

A sua função no formar da nacionalidade brasileira não está bem
estudada. Era um ponto fixo, era uma coisa séria, um corpo como
os há na natureza, dotados de força catalítica.

Agia pela presença.

O fato de existir na cúspide da sociedade um símbolo vivo e
ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do
Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das
melhores virtudes cívicas...

O juiz era honesto, senão por injunções da própria consciência, pela
presença da Honestidade no trono. O político visava o bem público,
se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influencia
catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição
possibilizava-se: o chefe permanente das oposições estava no 
Trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e
incorruptível. O peculatário, o defraudador, o político
negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o
mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais,
passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize. A
natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à
iniquidade – mas sofreava as rédeas aos maus instintos a simples
presença da Equidade e da Justiça no trono.


Ignorávamos isso na Monarquia.

Foi preciso que viesse a República, e que alijasse do trono a força
catalítica, para patentear-se bem claro o curioso fenômeno.
A mesma gente, o mesmo juiz, o mesmo político, o mesmo soldado,
o mesmo funcionário até 15 de novembro honesto, bem
intencionado, bravo e cumpridor dos deveres, percebendo, na
ausência do imperial freio, ordem de soltura, desaçamaram a
alcateia dos maus instintos mantidos em quarentena. Daí, o
contraste dia a dia mais frisante entre a vida nacional sob Pedro II e
a vida nacional sob qualquer das boas intenções quadrienais, que
se revezam na curul republicana.

Pedro II era a luz do baile.

Muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, jóias de
arte sobre os consolos, dando ao conjunto uma impressão genérica
de apuradíssima cultura social. 
Extingue-se a luz. 
As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se
tabefes, ouvem-se palavreados de tarimba, desaparecem as
jóias…

Como, se era a mesma gente!

Sim, era a mesma gente. Mas gente em formação, com virtudes
cívicas e morais em início de cristalização.


Mais um século de luz acesa, mais um século de catálise
imperial, e o processo cristalisatório se operaria completo. O
animal, domesticado de vez, dispensaria o açamo. Consolidarse-iam
os costumes; enfibrar-se-ia o caráter. E do mau material
humano com que nos formamos sairia, pela criação de uma
segunda natureza, um povo capaz de ombrear-se com os mais
apurados em cultura.

Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ninguém
mais capaz do que Pedro II; nenhuma forma de governo melhor do
que sua monarquia.

Mas sobrevém, inopinada, a República.

Idealistas ininteligentes, emparceirados com a traição e a
inconsciência da força bruta, substabelecem-se numa procuração
falsa e destroem a obra de Pedro II “em nome da nação”.
A nação não reage, inibida pela surpresa, e também porque lhe
acenam logo com um programa de maravilhas, espécie de paraíso
na terra.

É sempre assim. Não variam com a longitude nem com a latitude os
processos psicológicos de assalto ao poder.

Aqui, assaltado o poder e conquistadas as posições, houve um
geral arrancar de máscaras: Enfim, sós.

O “Alagoas” levava a bordo a luz importuna, a luz que empatava. E
começou a revista de ano que há trinta anos diverte o país.
Que diverte, mas que envenena.

Que envenena e arruína.

O que havia de cristalização social dissolve-se; volta ao estado de
geleia.

Sucedem-se na cena os atores, gingam-se as mesmas atitudes,
murmuram-se as mesmas mensagens, reeditam-se eternas
promessas.

O povo, cansado e descrente, farto de uma palhaceira destituída da
mínima originalidade, cochila nas arquibancadas. Nem aplaude,
nem assobia; dorme e sonha, entre outras coisas, com o inopinado
surto em cena de um delegado de polícia louro e dez praças de
uniforme desconhecido, que ponham fim a pantomima.
Não intervém para realizar por mãos próprias o “basta”, porque se
sente tão gelatinoso como os atores. Nada o galvaniza, não o espanta
nenhum jangotismo de tony.

A Imperial bandeira do Brasil

Abudistado, assiste até o indecoroso matar-se em massa.
As cenas do ano 1900, desenroladas na capital da República,
durante a última epidemia, são “os noves fora nada” da obra do 15
de novembro. A máquina governamental, caríssima, não funciona
nos momentos de crise. Não é feita para funcionar, senão para
sugar com fúria acarina o corpo doente do animal empolgado.
De norte a sul o povo lamuria a sua desgraça e chora envergonhado
o que perdeu.

Tinha um rei. Tem sátrapas.
Tinha dinheiro. Tem dívidas.
Tinha justiça. Tem cambalachos de toga.
Tinha parlamento. Tem antessalas de fâmulos.
Tinha o respeito do estrangeiro. Tem irrisão e desprezo.
Tinha moralidade. Tem o impudor deslavado.
Tinha soberania. Tem cônsules estrangeiros assessorando
ministros.
Tinha estadistas. Tem pegas.
Tinha vontade. Tem medo.
Tinha leis. Tem estado de sítio.
Tinha liberdade de impressa. Tem censura.
Tinha brio. Tem fome.
Tinha Pedro II. Tem… Não tem!
Era. Não é.

Numa época terrível para a vida universal, em que cada país procura
chefiar-se por intermédio dos homens de suprema energia, Wilson,
Loyd George, Clemenceau, Ebert, o Brasil apalpa pescoço e não
sente cabeça. Chegou a maravilha teratológica duma acefalia
inédita.

Anos atrás foi apresentado à Câmara dos Deputados um projeto de
lei mandando trasladar os restos de Pedro II para a terra natal. A
consciência desse ramo do Legislativo, num assomo de
revivescência, votou, em apoteose, a lei. Mauricio de Lacerda
definira, nesse dia, a política republicana, como feita de alcouces
e corrilhos.

A Câmara desmentiu-o por cinco votos. Mas o Senado confirmou-lhe
o asserto, por quase unanimidade. Não convinha à turba de
sarcorhamphus, pacificamente acomodada em torno da presa a
devorar – a Pátria – a transladação dos restos mortais. Quem sabe,
conservariam essas cinzas algo da misteriosa força que
caracterizou em vida Pedro II?



E viriam elas – agindo pela presença – perturbar a paz do festim?
“Nada, não perturbemos nossa digestão” – pensou o Senado. E o
projeto caiu.

O Brasil é uma nação a fazer. Ou refazer, já que destruíram os
alicerces da primeira tentativa séria. Cortado o fio da evolução
natural, baralhados os materiais, dispensados os operários
honestos e hábeis, hipotecadas as suas rendas, a política de hoje
vive de uma indústria nova: aluguel da consciência. Cada empresa
estrangeira aluga uma série. De uma, a mais poderosa de todas, é
sabido que chegou à perfeição de fichar comercialmente o
preço de homens públicos.

“É a deliquescência final, o esverdear”…este estado de coisas
é, entretanto, galvanizável. Bastaria repor na máquina a peça mestra
que tudo coordena, essa forca catalítica sem a qual nenhum povo
como o nosso, instável, em formação, produto dos mais díspares
elementos étnicos, conseguiu jamais alcançar as etapas sucessivas
da nacionalidade.

Um homem, uma continuidade de ação, um pulso – o bisneto de
Marco Aurélio ou Rosas.

A força mansa que norteia o evoluir ou a força violenta que arrasa,
desespera, e cria pela dor o instinto de defesa.

Tudo é preferível ao reino manhoso dos guzanos de boca dupla
– uma que mente ao povo, outra que o rói até aos ossos.
Esperemos em Anhangá, o deus brasileiro. 

Peçamos-lhe, neste mês dos aniversários imperiais, que 
ressuscite e reponha no seu lugar o espírito bom 
que neutralizava a influência dos espíritos maus.
É a nossa derradeira esperança, Anhangá…

Monteiro Lobato em "A Luz do baile"

Deus salve o Brasil!

4 comentários:

  1. Excelente texto. Pela primeira vez, leio uma comparação perfeita entre a Monarquia e esta república incompetente, corrupta e golpista. E não se trata de um texto escrito por qualquer um, mas por uma pessoa de inteira credibilidade.

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  2. Ótimo texto, de alguém que vivenciou um início triunfante e viu o caos a se iniciar em nossa amada Nação.

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  3. Monteiro Lobato, a análise Perfeita, premonitória!

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