domingo, 17 de dezembro de 2017

Aí Vem o Imperador!

Carlos de Laet

Revista da Semana, 28/11/1925

Ninguém, nos tempos que correm, pode imaginar, de longe sequer, o mágico efeito que durante largos anos, produziam no povo brasileiro estas palavras, muito embora freqüentemente repetidas:


-Aí vem o Imperador!

Não sei se pela extensa duração da autoridade longamente exercida por este homem, ou se, talvez, pelo conjunto de raras qualidades físicas e morais, que nele se realizaram, certo é que enorme foi o seu influxo sobre a mentalidade popular. Festa a que não comparecesse o Imperador considerava-se de segunda ordem, e sua presença, que aliás ele não regateava, era sempre um incentivo para maior freqüência em qualquer solenidade.

Singelo em seus modos e declarado inimigo de toda prática fútil e ociosa, o Imperador dominava as reuniões em que aparecia, e naturalmente se constituía o centro de todas as atenções.

Raro era o dia em que não o viam aplicado a visitas demoradas e profícuas às oficinas dos arsenais e das indústrias particulares, aos colégios e sociedades científicas, aos quartéis, ás fortalezas, aos navios, às obras públicas em construção, a toda parte, enfim, onde houvesse que examinar, fiscalizar e animar qualquer dos ramos da atividade nacional.

Entre as minhas recordações de meninices estão as repetidas aparições do Imperador no Colégio Pedro II. Todos nos alvoroçávamos e, entre desejosos e timoratos, aguardávamos que pela nossa aula entrasse aquele vulto que, com sua elevada estatura, formosa barba semi-alvejante e gesto de autoridade soberana, nos incutia indefinível sentimento de atração e respeito.

Invariavelmente determinava o augusto visitante fossem chamados o melhor e o pior estudante da turma. Felicitava o primeiro, quando este de ordinário se saía bem; e ao outro incumbia-se ele próprio de interrogar, insinuando-lhe as respostas e fazendo-lhe acreditar que o pobre vadio sabia alguma coisa.

Em suas relações com os mestres do Colégio, que eram então meus professores, notava eu o caprichoso apuro com que o Imperador falava em francês com o Sr. Halbout, em inglês com o Dr. Mota, em italiano com o Dr. De Simoni, em alemão com os Drs. Schiefler, Glodschmidt e Tautphoeus.

O homem que falava todas as línguas, argüia alunos em todas as matérias, e diante do qual se curvavam todas as autoridades escolares, assumia a nossos olhos as proporções grandiosas de um ente sobrenatural.

No Exército e na Armada, onde só muito mais tarde começou a grassar o mal positivista, a dedicação ao Chefe de Estado não padecia contraste sério. À bandeira e ao hino nacional uniam-se a personalidade do Imperador, fornecendo a trindade representativa da Pátria. Foi ao grito de viva o Imperador que os batalhões brasileiros compraram com seu sangue as grandes vitórias que de Rosas libertaram a Argentina e de López o Paraguai.

Na Europa entre os cientistas do Instituto de França, no Egito perlustrando antigos monumentos e aconselhando a formação dos museus que depois se desenvolveram, nos Estados Unidos assombrando por sua vasta cultura intelectual e lhaneza de trato os compatriotas de Washington – em toda parte por onde passava, ia deixando o Imperador o traço nítido e imorredouro de sua poderosa individualidade.

Quando, cansada de pensar e de trabalhar pelo Brasil, desfaleceu encanecida aquela nobre cabeça, e, em nome da liberdade, se entendeu que ao longo patriarcado liberal, que foi o Segundo Reinado, urgia sucederem as autocracias quadrienais que constituem os governos no regime presidencial, nem mesmo assim jamais esmoreceram o respeito e a veneração para com a pessoa do Imperador.

A revolução, que se lhe apresentou para intimar saísse do País, não o fez de espada nua e atitude ameaçadora, mas de cabeça descoberta e falando em nome da pacificação nacional. Era preciso exilá-lo, e não o fizeram à luz do sol como quem executa uma sentença, e sim nas trevas da noite, como quem aproveita desoras para encobrir um crime.

No dia 15 de novembro, quando ainda o povo brasileiro ignorava o que de sua soberania tinham feitos as classes armadas, vi passar em rápido trânsito, na Rua do Passeio, a carruagem que ao Paço da Cidade transportava o Imperador e a Imperatriz: ela, visivelmente impressionada, a olhar por uma das portinholas do carro; ele, sereno como sempre, fitando os transeuntes e a força militar ali estacionada para se opor à passagem dos revoltosos da Escola Militar... Tirei respeitosamente o chapéu, e respondeu-me o Soberano com amistoso aceno de mão. Foi a última vez que vi o Imperador.

Depois ele nos voltou em 1922, trazido pelo ato cavalheiresco do Sr. Epitácio Pessoa. Tiraram-no de bordo, lentamente o fizeram descer ao troar dos canhões em entre descargas de fuzilaria, até que finalmente aqueles restos tocassem o chão sagrado da Pátria. Estava morto o Imperador, mas ainda sua grande figura, trinta e três anos depois da catástrofe, dominava senhorilmente a imaginação popular. Parecia que o ambiente ainda se eletrizava com a aproximação destes despojos, envolvidos na saudade, mas sobre os quais pairava a indestrutível auréola de meio século de glória.

Mortos estão quase todos os que o depuseram; mortos igualmente muitos dos que com ele colaboraram no serviço da Pátria. Pouco importa! Há um sopro de verdade que perpassa as gerações, e que se chama tradição. Este ainda fala ao coração popular:

-Aí vem o Imperador!

Nenhum comentário:

Postar um comentário