quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A VINDA PARA O BRASIL

Embarque para o Brasil no porto de Belém. 
Gravura de Francisco Bartolozzi a partir de óleo de Nicolas Delariva.

O plano de transferência da Família Real e da corte de nobres portugueses para o Brasil, refúgio seguro para a soberania portuguesa quando a resistência militar a um invasor fosse inútil na metrópole, já havia sido anteriormente cogitado:


  1. durante a crise de sucessão de 1580, ante o avanço dos tercios do duque de Alba, o D. António I teria sido aconselhado a buscar um refúgio além-Atlântico
  2. no contexto da Restauração da independência (1640), quando a França abandonou Portugal no Congresso de Münster (1648), o padre António Vieira apontou ideia semelhante a D. João IV, associando-a ao vaticínio da fundação do Quinto Império;
  3. Posteriormente, embora sem ameaça militar iminente, o diplomata Luís da Cunha defendeu a ideia de se transferir para o Brasil a sede da monarquia portuguesa;
  4. A ideia principiou a ser colocada em prática quando da invasão de Portugal por tropas espanholas, no contexto do chamado Pacto de Família, tendo o marquês de Pombal chegado a ordenar o apresto de uma esquadra que transportaria D. José I, a Família Real e a corte. À época, Pombal considerava alguns exemplos estrangeiros, como a recomendação de Sébastien Le Prestre de Vauban ao futuro Filipe V de Espanha para que se refugiasse na América, e nomeadamente o precedente da Imperatriz Maria Teresa de Áustria que se dispusera a descer o rio Danúbio, caso a sua Corte em Viena viesse a correr perigo.
  5. No início do século XIX, no contexto internacional criado pela ascensão do Império de Napoleão Bonaparte, a ideia da retirada da Família Real para o Brasil voltou à tona, tendo sido defendida pelo marquês de Alorna em 30 de maio de 1801 e, novamente, em 16 de agosto de 1803, por D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
  6. A ideia de uma transferência para o Brasil, ressurgindo como um meio de reforço à segurança nacional, sobretudo em contextos de ameaça iminente à soberania de Portugal, foi apresentada como uma via necessária ao cumprimento de um projeto messiânico, como em António Vieira, ou como um meio para redefinir as relações de forças no "equilíbrio europeu" pós-Vestfália, como o marquês de Alorna, Luís da Cunha e o conde de Linhares.
O plano de Napoleão era o de aprisionar a Família Real portuguesa, sucedendo ao Príncipe-regente Dom João de Bragança (futuro Rei Dom João VI), o que veio a suceder a Fernando VII de Espanha - forçar uma abdicação. Teria Portugal um Bonaparte no trono e, paralelamente, a Inglaterra apossar-se-ia das colônias do império ultramarino português, sobretudo a colônia do Brasil.

Nas Côrtes portuguesas, haviam os que defendiam a saída imediata da Família Real para o Brasil e outros que queriam tentar a guerra e, só se as armas falhassem, se pensaria na transferência da Côrte. Pensaram em mandar apenas os herdeiros, mas a ideia geral da transferência da Corte para o Brasil já ficara resolvida na convenção secreta subscrita em Londres, em 22 de outubro de 1807, e que veio a ser ratificada em Lisboa no dia 8 de novembro. Pela mesma altura, chegava a Lisboa a notícia da prisão, em Espanha, do príncipe herdeiro do trono (Príncipe das Astúrias), e de que tropas espanholas e francesas se estavam a dirigir para a fronteira portuguesa. Confirmavam-se os propósitos de Napoleão em relação a Portugal e a Espanha; tinham fundamento as advertências do rei da Grã-Bretanha e as do chamado "partido inglês" no Conselho de Estado. Não havia alternativa à retirada de toda a Família Real e do governo do Reino para o Rio de Janeiro.

O príncipe regente apenas no dia 23 de novembro recebeu a notícia da penetração de tropas francesas em território português. Convocou imediatamente o Conselho de Estado, que decidiu embarcar o quanto antes toda a Família Real e o Governo, servindo-se da esquadra que estava pronta para o Príncipe da Beira e as infantas. Nos três dias seguintes ainda se aprontaram outros navios, que viriam a transportar para o Brasil cerca de quinze mil pessoas. Em 26, foi nomeada uma Junta Governativa do Reino para permanecer em Portugal, e difundidas Instruções aos Governadores, nas quais se dizia que "quanto possível for", deviam procurar conservar em paz o Reino, recebendo bem as tropas do Imperador. 

"(...) Vejo que pelo interior do meu reino marcham tropas do imperador dos franceses e rei da Itália, a quem eu me havia unido no continente, na persuasão de não ser mais inquietado (...) e querendo evitar as funestas consequências que se podem seguir de uma defesa, que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade, (...) tenho resolvido, em benefício dos mesmos meus vassalos, passar com a rainha minha senhora e mãe, e com toda a real família, para os estados da América, e estabelecer-me na Cidade do Rio de Janeiro até à paz geral."

Junot, no seu "Diário", manuscrito na Biblioteca Nacional da Ajuda, revela quanto os franceses receavam aquele embarque. Ao ser informado que este estava já em execução, e não podendo voar sobre o Ribatejo até Lisboa com as suas tropas, ainda enviou Hermann a Lisboa com a missão de o atrasar ou impedir. "Mr. Hermann ne put voir ni le Prince ni Mr. D. Araujo; celui-ci seulement lui dit que tout était perdu" ("O Sr. Hermann não pôde ver nem o Príncipe nem o sr. D. Araujo; este apenas lhe disse que tudo estava perdido"), escreveria depois Junot a Bonaparte. Para Araújo, para o "partido francês", o mais importante estava na verdade perdido - não era mais possível aos franceses aprisionarem o príncipe-regente de Portugal.

Alegoria da chegada de D. João ao Brasil

Após a partida, os navios da esquadra portuguesa, escoltados pelos ingleses, dispersaram-se devida a uma forte tempestade. Em 5 de dezembro conseguiram se reagrupar e logo depois, em 11 de dezembro, a frota avistou a ilha da Madeira. As embarcações chegaram à costa da Bahia a 18 de janeiro de 1808 e, no dia 22, os habitantes de Salvador já puderam avistar os navios da esquadra. Às quatro horas da tarde do dia 22, após os navios estarem fundeados, o conde da Ponte (governador da capitania da Bahia à época) foi a bordo do navio Príncipe Real. No dia seguinte, fizeram o mesmo os membros da Câmara. A comitiva real só desembarcou às cinco horas da tarde do dia 24, em uma grande solenidade. Em Salvador foi assinado o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas.
A esquadra partiu de Salvador rumo ao Rio de Janeiro, onde chegou no dia 8 de março de 1808, desembarcando no cais do Largo do Paço (atual Praça XV de Novembro). Os membros da Família Real foram alojados em três prédios no centro da cidade, entre eles o paço do vice-rei Marcos de Noronha e Brito, conde dos Arcos, e o convento das Carmelitas. Os demais agregados espalharam-se pela cidade. Em outra medida tomada logo após a chegada da corte ao Brasil, declarou-se guerra à França, e foi ocupada a Guiana Francesa em 1809. Em abril de 1808, o Príncipe Regente decretou a suspensão do alvará de 1785, que proibia a criação de indústrias no Brasil. Ficavam, assim, autorizadas as atividades em território colonial. A medida permitiu a instalação, em 1811, de duas fábricas de ferro, em São Paulo e em Minas Gerais. Findava o pacto colonial.

Entre as mudanças que ocorreram com a Família Real, destacam-se as nove principais:
  1. a abertura dos portos às nações amigas em 1808;
  2. a criação da Imprensa Régia e a autorização para o funcionamento de tipografias e a publicação de jornais em 1808;
  3. a fundação do primeiro Banco do Brasil, em 1808;
  4. a criação da Academia Real Militar (1810);
  5. a abertura de escolas, entre as quais duas de Medicina;
  6. a instalação de uma fábrica de pólvora e de indústrias de ferro em MG e SP;
  7. a vinda da Missão Artística Francesa em 1816, e a fundação da Academia de Belas Artes;
  8. a mudança de denominação das unidades territoriais, que deixaram de se chamar "capitanias" e passaram a denominar-se de "províncias" (1821);
  9. a criação da Biblioteca Real (1810), do Jardim Botânico (1811) e do Museu Real (1818).
Ao evitar-se que a Família Real portuguesa fosse aprisionada em Lisboa pelas tropas francesas, inviabilizou-se o projeto de Napoleão para a península Ibérica, que consistia em estabelecer nela famílias reais da sua própria família, como ainda se tentou em Espanha com a deposição de Fernando VII e Carlos IV, colocando no trono José Bonaparte. A revelação da correspondência secreta de Junot e de Napoleão, bem como os textos dos Tratados secretos de Tilsit, não deixam margem para quaisquer dúvidas a este respeito. 

"Somente três inimigos me derrotaram, a armada inglesa, o inverno russo e o Príncipe Regente de Portugal"
- Napoleão Bonaparte em "Memórias de Santa Helena".

FONTES:
    1. FAORO, Raimundo. Os donos do poder. São Paulo: Globo, 1991.
    2. GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Ed. Planeta, 2008.
    3. OLIVEIRA, Cecília Helena de S.. A independência e a construção do império. São Paulo: Atual, 1995.
    4. OLIVEIRA LIMA, Manuel de. D. João VI no Brasil (2ª ed.). Rio de Janeiro: José Olympio, 1945.
    5. SEPÚLVEDA, Cristóvão A. M.. História Orgânica e Política do Exército Português - Provas, volume XVII, Invasão de Junot em Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932.
    6. SARDINHA, António. Ao Ritmo da Ampulheta (2ª ed.). Lisboa: Biblioteca do Pensamento Político, 1978. p. 246-256.
    7. WILCKEN, Patrick. Império à Deriva. A corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

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