quinta-feira, 13 de agosto de 2015

DE COLÔNIA A REINO UNIDO

Bandeira do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves 

Em 22 de janeiro de 1808 o navio que levava o regente mais duas outras naus aportaram na Baía de Todos os Santos, no Brasil. Mas em Salvador o cais estava deserto, pois o governador, o conde da Ponte, preferiu primeiro aguardar as ordens do príncipe para depois permitir que o povo o recepcionasse. Estranhando a atitude, ordenou D. João que todos viessem como quisessem. Entretanto, para permitir que a nobreza se recompusesse depois de tão penosa jornada, o desembarque foi protelado para o dia seguinte, quando foram recebidos festivamente, em meio a uma procissão, repicar de sinos e a celebração de um Te Deum na Catedral. Nos dias seguintes o príncipe recebeu todos os que o quiseram homenagear, prestando-se ao cerimonial do beija-mão e concedendo várias mercês. Entre elas, decretou a criação de uma aula pública de economia e uma escola de cirurgia, mas sobretudo foi decisiva neste primeiro momento a abertura dos portos às nações amigas, uma medida de vasta importância política e econômica e a primeira de muitas que tomaria para melhorar as condições da colônia. Salvador passou um mês em comemorações pela presença da corte, e tentou seduzi-la para transformá-la em nova sede do reino, oferecendo-se até para construir um luxuoso palácio para abrigar a família real, mas D. João, lembrando aos locais que anunciara a todas as nações sua intenção de fixar-se no Rio de Janeiro, declinou, e prosseguiu viagem. O navio que o levava entrou na Baía de Guanabara em 7 de março, onde encontrou-se com as infantas e outros membros da comitiva, cujos navios haviam chegado antes. No dia 8 finalmente toda a corte desembarcou, encontrando a cidade engalanada para recebê-la. Foram nove dias de celebrações ininterruptas. Um conhecido cronista da época, o padre Perereca, testemunha ocular da chegada, ao mesmo tempo em que lamentava as notícias da invasão da metrópole, já intuía o que significava a corte em solo brasileiro:

"Se tão grandes eram os motivos de mágoa e aflição, não menores eram as causas de consolo e de prazer: uma nova ordem de coisas ia a principiar nesta parte do hemisfério austral. O império do Brasil já se considerava projetado, e ansiosamente suspirávamos pela poderosa mão do príncipe regente nosso senhor para lançar a primeira pedra da futura grandeza, prosperidade e poder de novo império".


Com a corte viera o essencial do aparato de um Estado soberano: a alta hierarquia civil, religiosa e militar, aristocratas e profissionais liberais, artesãos qualificados, servidores públicos. Para muitos estudiosos na transferência da corte para o Rio se iniciou a fundação do Estado brasileiro moderno e deu-se o primeiro passo em direção à sua verdadeira independência. Mesmo que formal e juridicamente o Brasil ainda permanecesse algum tempo como colônia portuguesa, nas palavras de Caio Prado Jr:

"Estabelecendo no Brasil a sede da monarquia, o regente aboliu ipso facto o regime de colônia em que o país até então vivera. Todos os caracteres de tal regime desaparecem, restando apenas a circunstância de continuar à frente de um governo estranho. São abolidas, uma atrás da outra, as velhas engrenagens da administração colonial, e substituídas por outras já de uma nação soberana. Caem as restrições econômicas e passam para um primeiro plano das cogitações políticas do governo os interesses do país".

Com o tempo a fisionomia urbana também começou a mudar, com a construção de inúmeras novas residências, palacetes e outras edificações, e foram implementadas várias melhorias nos serviços e na infraestrutura. Igualmente, a presença da corte introduziu novos padrões de etiqueta, novas modas e novos costumes, incluindo uma nova estratificação social. Entre os ditos costumes, D. João VI continuou no Brasil o antigo cerimonial português do beija-mão, pelo qual tinha grande apreço e que entrou para o folclore, exercendo grande fascínio sobre o povo. Recebia seus súditos todos os dias, excetuando domingos e feriados, que em longas filas, onde se misturavam nobres e plebeus, esperavam para mostrar seu respeito pelo monarca e pedir-lhe mercês. Disse o pintor Henry L’Evêque que "o Príncipe, acompanhado por um Secretário de Estado, um Camareiro e alguns oficiais de sua Casa, recebe todos os requerimentos que lhe são apresentados; escuta com atenção todas as queixas, todos os pedidos dos requerentes; consola uns, anima outros.... A vulgaridade das maneiras, a familiaridade da linguagem, a insistência de alguns, a prolixidade de outros, nada o enfada. Parece esquecer-se de que é senhor deles para se lembrar apenas de que é o seu pai". Oliveira Lima registrou que ele "nunca confundia as fisionomias nem as súplicas, e maravilhava os requerentes com o conhecimento que denotava das suas vidas, das suas famílias, até de pequenos incidentes ocorridos em tempos passados e que eles mal podiam acreditar terem subido à ciência d'el-rei".

Ao longo de sua permanência no Brasil o rei formalizaria a criação de um enorme número de instituições e serviços públicos e fomentaria a economia, a cultura e outras áreas da vida nacional. Todas essas medidas foram tomadas a princípio pela necessidade prática de se administrar um grande império em um território antes desprovido desses recursos, pois a ideia predominante era a de que o Brasil permaneceria como uma colônia, visto que se esperava um retorno da corte para a antiga metrópole assim que a situação política europeia se normalizasse. Entretanto, esses avanços se tornariam a base da futura autonomia do Brasil. Quando Napoleão foi apeado do poder, em 1815, as potências europeias instalaram o Congresso de Viena para reorganizar o mapa político do velho continente. Portugal participou das negociações, mas diante das maquinações inglesas contrárias aos interesses da Casa de Bragança, o regente foi aconselhado a permanecer no Brasil pelo conde de Palmela, embaixador português junto ao Congresso, e pelo poderoso príncipe de Talleyrand, a fim de estreitar os laços entre metrópole e colônia, sugerindo-se inclusive a elevação da colônia à condição de reino unido a Portugal. O representante inglês também acabou concordando com a ideia, que resultou na efetiva criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 16 de dezembro de 1815, instituição jurídica rapidamente reconhecida por outras nações.

No decorrer dos poucos anos de sua permanência no Brasil, D. João ordenou a criação de uma série de instituições, projetos e serviços que beneficiaram imensamente o país no âmbito econômico, administrativo, jurídico, científico, cultural, artístico e outros mais. Foi o responsável pela criação da Imprensa Régia, do Jardim Botânico, do Arsenal de Marinha, da Fábrica de Pólvora, da Marinha Mercante, da Casa dos Expostos. Também criou diversas aulas avulsas no Rio, Pernambuco, Bahia e outros lugares, tais como teologia, dogmática e moral; cálculo integral, mecânica, hidrodinâmica, química, aritmética, geometria; francês e inglês; botânica e agricultura, e várias mais. Fomentou a fundação de diversas sociedades e academias para estudos científicos, literários e artísticos, como a Junta Vacínica, a Real Sociedade Bahiense dos Homens de Letras, o Instituto Acadêmico das Ciências e das Belas-Artes, a Academia Fluminense das Ciências e Artes, a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, a Academia dos Guardas-Marinhas, a Academia Militar, a Real Biblioteca, o Museu Real, o Teatro Real de São João, além de recrutar solistas de canto de fama internacional e patrocinar os músicos da Capela Real, onde se incluía o padre José Maurício, o maior compositor brasileiro de seu tempo, apoiando também a vinda da Missão Artística Francesa, que resultou na criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, antecessora da Academia Imperial de Belas Artes, de fundamental importância para a renovação do ensino e produção de arte no Brasil.

Na economia D. João determinou mudanças de largo alcance, iniciando a partir da abertura dos portos e da abolição do monopólio comercial dos portugueses, tendo a Inglaterra como a grande beneficiada. Se por um lado os comerciantes instalados no Brasil tiveram de enfrentar poderosa concorrência estrangeira, por outro se fomentou a criação de novas manufaturas e outras atividades econômicas que antes eram proibidas, precárias ou inexistentes no Brasil. Ao mesmo tempo, iam-se instalando diversos órgãos administrativos de alto escalão, como os ministérios da Guerra e Estrangeiros e o da Marinha e Ultramar; os Conselhos do Estado e o da Fazenda, o Conselho Supremo Militar, o Arquivo Militar, as Mesas de Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens, a Casa de Suplicação, a Intendência Geral da Polícia, o Banco do Brasil a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, e a Administração Geral dos Correios, além de passar a absorver brasileiros nos quadros administrativos e funcionais, contribuindo para diminuir as tensões entre os nativos e os portugueses. Também incentivou a produção agrícola, especialmente do algodão, arroz e cana-de-açúcar; abriu estradas e estimulou a navegação fluvial, dinamizando a circulação de pessoas, bens e produtos entre as regiões.

FONTES:

  1. Lobo Neto, Francisco José da Silveira. "D. João VI e a educação brasileira: alguns documentos". In: Trabalho Necessário, ano 6, nº 6, 2008, s/p.
  2. Mota, Carlos Guilherme. Viagem incompleta: a experiência brasileira. A grande transação. Senac, 2000, pp. 453-454
  3. Fernandes, Cláudia Alves & Fernandes Junior, Ricardo de Oliveira. "D. João VI: arquiteto da emancipação brasileira". In: XXII Simpósio de História do Vale do Paraíba, Associação Educacional Dom Bosco, Resende, de 15 a 17 de agosto de 2008. pp. 36-38
  4. Oliveira, Anelise Martinelli Borges. "Dom João VI no Rio de Janeiro: preparando o novo cenário". In: Revista História em Reflexão: Vol. 2 n. 4 – UFGD - Dourados jul/dez 2008
  5. Lima, Carollina Carvalho Ramos de. "Viajantes estrangeiros na corte de Dom João". In: Anais do II Fórum de Artigos Multidisciplinares, Uni-FACEF Centro Universitário de Franca, 05 a 09 de maio de 2008, s/p.
  6. Carvalho, Marieta Pinheiro de. D. João VI: perfil do rei nos trópicos. Rede Virtual da Memória Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional, 2008
  7. Caiena: mapa do comércio. O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira, 26/11/2004
  8. Bandeira, Moniz. Casa da Torre de Garcia d'Avila. Editora Record, 2000, pp. 423-425
  9. Loyola, Leandro. "A nova história de Dom João VI". In: Revista Época, nº 506, 30/01/2008



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