domingo, 25 de outubro de 2015

DA NECESSÁRIA SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E GOVERNO (PARTE I)


Sabe-se que, diferentemente dos Estados Unidos, em que a separação tripartite dos Poderes representa um arranjo adequado de instituições para a sociedade americana, fortemente consensual em sentido social, o Brasil adentrou na era da axiologia constitucional sem um projeto coerente e racional de instituições políticas. Para a realidade americana, a tripartição de poderes aparece como um modelo de consagração histórica, existente desde a fundação do país e que, por isso, mostra-se extremamente adequado à realidade norte-americana, firmemente sustentada em princípios tais como o "common law" e o "self-government", próprios da cultura anglo-saxônica. O "self-government", enquanto princípio, refere que a sociedade americana é uma sociedade formada da base para o topo, isto é, uma sociedade que precede a formação do Estado, razão pela qual é uma sociedade fortemente detentora da capacitação para empreender projetos políticos e sociais a partir de si mesma, sem a necessidade de uma intervenção massiva do governo. Desta maneira, a tripartição de poderes, nos Estados Unidos, representa um modelo acidental de instituições políticas, uma vez que a maior parcela de poder é concentrada na própria sociedade e esta, organizada na base, possui condições sociais e políticas suficientes para controlar os poderes políticos, equilibrando-os. A democracia social americana, de que falou TOCQUEVILLE, representa um modelo político em que o monopólio da legitimidade de poder e de controle não se situa dentre os poderes, mas na própria base social. A sociedade, assim, possui condições de controlar o poder e, ao assim proceder, vivenciar na prática a democracia constitucional. Em um certo sentido, é apropriado dizer que nos Estado Unidos, a sociedade, e não o Estado, é o verdadeiro centro de poder. Tanto é, que ROBERT DAHL chama tal sistema de Poliarquia.

Este forte caráter de autogoverno presente na sociedade americana é devido ao processo histórico que resultou na revolução americana, verdadeira fundação do país. A América foi formada por um processo de emigração de famílias inglesas que se organizaram socialmente, em comunidades coloniais. Os Estados Unidos não conheceram um passado feudal, o que afastou o país das heranças baseadas nos ideários sociais de estratificação e sustentação tradicional do poder. Por estas razões, o consenso na América não é um atributo das instituições políticas, mas uma função desempenhada pela própria sociedade americana que, por meio do consenso social e do alto grau de poder que concentra e controla efetivamente o poder político (poliarquia). Sobre isto, CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR demonstra que “nos Estados Unidos, a fonte sócio-política do poder está no povo, na comunidade. Lá a afirmação de que ‘o poder emana do povo’ não soa como simples princípio jurídico, um ‘dever-ser’ inscrito na Constituição, mas corresponde ao que foi, na realidade histórica, a formação americana. Conseqüentemente, o povo é politicamente forte em relação ao poder estatal que ele próprio criou”.

Tais características da sociedade política americana são diametralmente diferentes da realidade brasileira. A formação de nossa sociedade ocorreu de modo distinto daquele sucedido entre os norte-americanos. No entanto, a partir de 1891, com a adoção do modelo republicano em território brasileiro, transportamos para nossa realidade as instituições consagradas nos Estados Unidos. Tais instituições, em sua gênese, consistiam em dois pontos: primeiro, na adoção de um presidencialismo de estirpe norte-americana, em que as funções de Chefia de Estado e Chefia de Governo passariam, de imediato, a ser compreendidas em uma mesma pessoa que, ocupando o Poder Executivo (a presidência da república), exerceria duas funções distintas: a função de Estado e a função de Governo; o segundo ponto seria a transplantação de um arranjo tripartite de poderes, em que Executivo, Legislativo e Judiciário estariam em posições eqüidistantes e eqüipotentes, sem a presença de um poder acima destes para estabelecer o equilíbrio e a manutenção moderadora da integridade política. A Constituição republicana de 24 de fevereiro de 1891, assim, fez tabula rasa das instituições do Império e consagrou entre nós um presidencialismo forte, bem como uma separação de poderes à moda clássica (vigente nos Estados Unidos). Com isto, derrubou o sistema tradicional do Império, em que existia um quarto poder, a saber, o Poder Moderador, responsável pela função de Chefia de Estado e de árbitro dos demais poderes. Este, em suas atribuições constitucionais, controlava e limitava a atuação dos demais em função da manutenção da unidade política e da integridade do consenso.

JOÃO CAMILO DE OLIVEIRA TÔRRES é claro a esse respeito: “Depois do Poder Legislativo, isto é, do poder que tem a nação de determinar regras gerais para o comportamento de seus membros e de autoconstituir-se, vem o Poder Régio, aquele que possui a nação de reger-se a si mesma, de auto-determinar-se. Pela Constituição, tal função cabia ao Imperador, que exercia o Poder Moderador, o poder de manter em equilíbrio a máquina do Estado e de representar a nação perante o mundo. Uma prova da consciência toda especial que tinham os homens da primeira fase da história do Império do caráter essencialmente moderador das funções imperiais dá-nos a educação ministrada a D. Pedro II em menino. Pretendiam (e, no caso, conseguiram-no) fazer dele um homem em quem as paixões não deveriam nunca ter lugar e que, em tudo e por tudo, se fizesse inspirar pelos princípios abstratos da razão. E que pusesse os ideais espirituais e éticos acima de tudo. A grandeza e a fraqueza dos tediosos e quase tétricos educadores do ‘pupilo da Nação’ estava em que, no século do capitalismo e na América, criaram um chefe de Estado que colocava os fins morais do Estado acima dos valores econômicos. Daí a "ditadura" da moralidade e a tacha de inimigo do progresso que muitos deram a D. Pedro II. A Constituição de 1824, ao tratar do Poder Moderador, reproduzia em suas linhas mestras o conceito tradicional da realeza medieval. O Imperador, como chefe de Estado, continuava gozando das prerrogativas de seus antepassados”.

Nesse sentido, o art. 98 da Constituição do Império brasileiro de 1824 falava que “o Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao imperador como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Como se observa, o Poder Moderador era, à época imperial, o poder responsável pela manutenção do consenso político, a saber, pela manutenção da ordem política brasileira e, assim, da unidade da nação em seus valores comuns. O fim da era imperial brasileira e o advento da república entre nós representou, portanto, a adoção de um modelo consagrado em território norte-americano, em que as características de formação social e política diferem em muito do caso brasileiro. Estas diferenças de formação, em razão de distintas posturas das sociedades políticas norte-americana e brasileira frente ao poder, ocasionaram também diferenças nos resultados em cada um dos países. Por que isso aconteceu?

SEYMOUR MARTIN LIPSET diz que “deve-se atentar para o fato de que o caráter dos regimes democráticos pode variar consideravelmente, dependendo dos diversos elementos na estrutura social das nações com os quais as instituições políticas devem entrelaçar-se”. Completando,
OLIVEIRA TÔRRES é salutar, ao referir que “em países diferentes as instituições serão diferentes, mesmo fundadas em leis iguais. Talvez que, se as Constituições tivessem tido redações dessemelhantes, os resultados se assemelhassem. Importa, pois, apurar a diferença, isto é, a razão pela qual os países da América Ibérica diferem, quanto à política, dos Estados Unidos”.

Parece claro que a diferença substancial entre os dois países reside na formação de suas sociedades políticas. Enquanto nos Estados Unidos a Sociedade precede a Política, havendo um consenso social forte e efetivo, a saber, um "self-government", no Brasil, assim como em todos os países da América Ibérica, o Estado precede e forma a Sociedade, sem o qual esta não existiria. Na verdade, a precedência do Estado sobre a formação social, entre nós, caracteriza na sociedade brasileira, um forte apego às coisas do Estado, anteriormente à sociedade em si mesma. Por essa razão, a sociedade brasileira é uma sociedade altamente dissensual na base e ausente em forças sociais que possam mobilizá-la em direção a um projeto comum. Este apego às coisas do Estado intensifica-se com a herança de uma cultura altamente patrimonialista ofertada pela civilização lusitana, formadora do Brasil.

Por esse motivo, viu-se a adoção de uma versão republicana à moda norte-americana sendo transportada para o Brasil, uma realidade social em que o Estado é forte, patrimonialista e precedente em relação à sociedade. Quais as conseqüências desse fato?

Primeiro, o presidencialismo brasileiro acabou com a função moderadora do chefe de Estado, como era vigente na Constituição do Império. Assim, a partir da República, o presidente passa a concentrar duas funções: chefia de Estado e Chefia de Governo. Segundo, com a versão tripartite dos poderes, tal como temos hoje, não há um órgão para estabelecer o consenso político acima dos demais. Em razão disso, pressupunha-se que a sociedade brasileira pudesse realizar um forte controle efetivo sobre os poderes. Porém, tal não sucedeu. A sociedade brasileira, por herança patrimonialista e concebida pelo Estado, não o controla efetivamente. Muito pelo contrário. Por ele age e por ele é condicionada. A conseqüência disso foi uma inadequação das instituições americanas ao nosso contexto, que começou com a República e perpassa até os dias atuais. A importação indevida das instituições americanas para o Brasil e também para toda a América Ibérica em geral, acabou assim, por concentrar uma alta carga de poderes nas mãos do Poder Executivo, o que durante o século XX se agravou com diversas ondas de golpes de Estado e de Autoritarismos que marcaram a região nesse período.

Este agravamento se deve ao fato de que, diferentemente dos Estados Unidos, a sociedade brasileira e latino-americana de um modo geral não possui forças sociais capacitadas para estabelecer um controle eficaz e poliárquico sobre o Poder do Governo, razão pela qual os golpes e regimes de exceção são facilitados frente ao fraco caráter controlador das sociedades da América Ibérica.

Assim, na realidade, a adoção do presidencialismo e sua perpetuação na história da República brasileira representou e continua a representar uma paulatina inviabilidade para todo e qualquer projeto político sério e comprometido com o bem comum. A saber: o sistema presidencialista e a tripartição clássica dos poderes demonstra um anacronismo em relação ao que a democracia constitucional brasileira aspira em termos práticos.

Os bens e valores do sistema democrático brasileiro são postados em nossa Constituição de 1988 como fins da democracia constitucional. Todavia, como vimos, tais finalidades são realizadas de modo mais concreto e eficiente quando o Estado de Direito e o arranjo de suas instituições estão organizados para corresponder às exigências do bem comum.

Ora, diante disso, qual o problema sociológico evidente que atrapalha para a melhor concretização da democracia constitucional brasileira, na realidade social? Ou melhor, como podemos pensar um caminho eficaz para a efetividade social das normas constitucionais que tratam da composição ontológica de nosso sistema político?

Se a sociedade brasileira foi fundada de cima para baixo, como ficou evidenciado, sendo o Estado e não a sociedade o verdadeiro pólo de poder entre nós, fato é que o caminho para um melhor arranjo de instituições rumo ao consenso não pode começar na sociedade, mas no Estado, gênese da existência nacional. O consenso, em razão disso, deve ser primeiro político, para depois almejar a comunidade.

 CONTINUA...

Por: Marcus Boeira. 

FONTES: 
  1. ACKERMAN, Bruce. La nuova separazione dei poteri: prezidenzialismo e sistemi democratici. 1ª ed. Roma: Carocci, 2003;
  2. CALÓGERAS, J. Pandiá. Formação histórica do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938;
  3. DAHL, Robert. Poliarquia. 1ª ed. São Paulo: Edusp, 1997;
  4. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001;
  5. HUNTINGTON, Samuel. A Terceira Onda: a democratização no final do século XX. 1ª ed. São Paulo: Ática, 1994;
  6. LINZ, Juan J. e STEPAN, Alfred. A Transição e Consolidação da Democracia: a experiência do sul da Europa e da América do Sul. 1ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999;
  7. LIPSET, Seymour Martin. Por que não houve socialismo na América? 1ª ed. Lisboa: Quetzal, 2001;
  8. A Sociedade Americana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1966;
  9. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª ed. Barcelona: Ariel, 1970;
  10. MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Dinossauro: uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. 1ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1988;
  11. MELO FRANCO, Afonso Arinos e PILA, Raul. Presidencialismo ou Parlamentarismo? 1ª ed. Brasília: Senado Federal, 1999;
  12. OLIVEIRA TORRES, João Camilo. A Democracia Coroada. 1ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957;
  13. O Presidencialismo no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: edições O Cruzeiro, 1962;
  14. Instituições Políticas e Sociais do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Coleção F.T.D., 1965;
  15. PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império. In: Marquês de São Vicente, organizado por Eduardo Kugelmas, 1ª edição, São Paulo: editora 34, 2002;
  16. RAMOS, Elival da Silva. Uma nova Constituição: a proposta parlamentarista, artigo publicado na Revista Bimestral de Investigação e Cultura da editora convívio. São Paulo: volume 25, ano XXI, 1982;
  17. SÁNCHES AGESTA, Luis. Curso de Derecho Constitucional Comparado. 7ª ed. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1980;
  18. SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978;
  19. Morfologia Política e sistema de Poderes. São Paulo: Tese para exame de livre-docência, junto ao Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2003;
  20. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Livro I: leis e costumes. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
  21. VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006;
  22. WEBER, Max. Economia y Sociedad. 15ª ed. reimpr. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2004.

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