Sabe-se que, diferentemente dos Estados Unidos, em que a separação
tripartite dos Poderes representa um arranjo adequado de instituições
para a sociedade americana, fortemente consensual em sentido social, o
Brasil adentrou na era da axiologia constitucional sem um projeto
coerente e racional de instituições políticas. Para a realidade
americana, a tripartição de poderes aparece como um modelo de
consagração histórica, existente desde a fundação do país e que, por
isso, mostra-se extremamente adequado à realidade norte-americana,
firmemente sustentada em princípios tais como o "common law" e o
"self-government", próprios da cultura anglo-saxônica. O "self-government",
enquanto princípio, refere que a sociedade americana é uma sociedade
formada da base para o topo, isto é, uma sociedade que precede a
formação do Estado, razão pela qual é uma sociedade fortemente detentora
da capacitação para empreender projetos políticos e sociais a partir de
si mesma, sem a necessidade de uma intervenção massiva do governo.
Desta maneira, a tripartição de poderes, nos Estados Unidos, representa
um modelo acidental de instituições políticas, uma vez que a maior
parcela de poder é concentrada na própria sociedade e esta, organizada
na base, possui condições sociais e políticas suficientes para controlar
os poderes políticos, equilibrando-os. A democracia social americana,
de que falou TOCQUEVILLE, representa um modelo político em que o
monopólio da legitimidade de poder e de controle não se situa dentre os
poderes, mas na própria base social. A sociedade, assim, possui
condições de controlar o poder e, ao assim proceder, vivenciar na
prática a democracia constitucional. Em um certo sentido, é apropriado
dizer que nos Estado Unidos, a sociedade, e não o Estado, é o verdadeiro
centro de poder. Tanto é, que ROBERT DAHL chama tal sistema de
Poliarquia.
Este forte caráter de autogoverno presente na sociedade americana é
devido ao processo histórico que resultou na revolução americana,
verdadeira fundação do país. A América foi formada por um processo de
emigração de famílias inglesas que se organizaram socialmente, em
comunidades coloniais. Os Estados Unidos não conheceram um passado
feudal, o que afastou o país das heranças baseadas nos ideários sociais
de estratificação e sustentação tradicional do poder. Por estas razões, o
consenso na América não é um atributo das instituições políticas, mas
uma função desempenhada pela própria sociedade americana que, por meio
do consenso social e do alto grau de poder que concentra e controla
efetivamente o poder político (poliarquia). Sobre isto, CEZAR SALDANHA
SOUZA JUNIOR demonstra que “nos Estados Unidos, a fonte sócio-política
do poder está no povo, na comunidade. Lá a afirmação de que ‘o poder
emana do povo’ não soa como simples princípio jurídico, um ‘dever-ser’
inscrito na Constituição, mas corresponde ao que foi, na realidade
histórica, a formação americana. Conseqüentemente, o povo é
politicamente forte em relação ao poder estatal que ele próprio criou”.
Tais características da sociedade política americana são diametralmente
diferentes da realidade brasileira. A formação de nossa sociedade
ocorreu de modo distinto daquele sucedido entre os norte-americanos. No
entanto, a partir de 1891, com a adoção do modelo republicano em
território brasileiro, transportamos para nossa realidade as
instituições consagradas nos Estados Unidos. Tais instituições, em sua
gênese, consistiam em dois pontos: primeiro, na adoção de um
presidencialismo de estirpe norte-americana, em que as funções de Chefia
de Estado e Chefia de Governo passariam, de imediato, a ser
compreendidas em uma mesma pessoa que, ocupando o Poder Executivo (a presidência da república), exerceria duas funções distintas: a função de
Estado e a função de Governo; o segundo ponto seria a transplantação de
um arranjo tripartite de poderes, em que Executivo, Legislativo e
Judiciário estariam em posições eqüidistantes e eqüipotentes, sem a
presença de um poder acima destes para estabelecer o equilíbrio e a
manutenção moderadora da integridade política. A Constituição republicana de 24 de fevereiro de 1891, assim, fez tabula
rasa das instituições do Império e consagrou entre nós um
presidencialismo forte, bem como uma separação de poderes à moda
clássica (vigente nos Estados Unidos). Com isto, derrubou o sistema
tradicional do Império, em que existia um quarto poder, a saber, o Poder Moderador, responsável pela função de Chefia de Estado e de árbitro dos
demais poderes. Este, em suas atribuições constitucionais, controlava e
limitava a atuação dos demais em função da manutenção da unidade
política e da integridade do consenso.
JOÃO CAMILO DE OLIVEIRA TÔRRES é claro a esse respeito: “Depois do Poder
Legislativo, isto é, do poder que tem a nação de determinar regras
gerais para o comportamento de seus membros e de autoconstituir-se, vem o
Poder Régio, aquele que possui a nação de reger-se a si mesma, de
auto-determinar-se. Pela Constituição, tal função cabia ao Imperador,
que exercia o Poder Moderador, o poder de manter em equilíbrio a máquina
do Estado e de representar a nação perante o mundo. Uma prova da
consciência toda especial que tinham os homens da primeira fase da
história do Império do caráter essencialmente moderador das funções
imperiais dá-nos a educação ministrada a D. Pedro II em menino.
Pretendiam (e, no caso, conseguiram-no) fazer dele um homem em quem as
paixões não deveriam nunca ter lugar e que, em tudo e por tudo, se
fizesse inspirar pelos princípios abstratos da razão. E que pusesse os
ideais espirituais e éticos acima de tudo. A grandeza e a fraqueza dos
tediosos e quase tétricos educadores do ‘pupilo da Nação’ estava em que,
no século do capitalismo e na América, criaram um chefe de Estado que
colocava os fins morais do Estado acima dos valores econômicos. Daí a
"ditadura" da moralidade e a tacha de inimigo do progresso que muitos
deram a D. Pedro II. A Constituição de 1824, ao tratar do Poder
Moderador, reproduzia em suas linhas mestras o conceito tradicional da
realeza medieval. O Imperador, como chefe de Estado, continuava gozando
das prerrogativas de seus antepassados”.
Nesse sentido, o art. 98 da Constituição do Império brasileiro de 1824
falava que “o Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e
é delegado privativamente ao imperador como chefe supremo da nação e
seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a
manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes
políticos”. Como se observa, o Poder Moderador era, à época imperial, o
poder responsável pela manutenção do consenso político, a saber, pela
manutenção da ordem política brasileira e, assim, da unidade da nação em
seus valores comuns. O fim da era imperial brasileira e o advento da república entre nós
representou, portanto, a adoção de um modelo consagrado em território
norte-americano, em que as características de formação social e política
diferem em muito do caso brasileiro. Estas diferenças de formação, em
razão de distintas posturas das sociedades políticas norte-americana e
brasileira frente ao poder, ocasionaram também diferenças nos resultados
em cada um dos países. Por que isso aconteceu?
SEYMOUR MARTIN LIPSET diz que “deve-se atentar para o fato de que o
caráter dos regimes democráticos pode variar consideravelmente,
dependendo dos diversos elementos na estrutura social das nações com os
quais as instituições políticas devem entrelaçar-se”. Completando,
OLIVEIRA TÔRRES é salutar, ao referir que “em países diferentes as instituições serão diferentes, mesmo fundadas em leis iguais. Talvez que, se as Constituições tivessem tido redações dessemelhantes, os resultados se assemelhassem. Importa, pois, apurar a diferença, isto é, a razão pela qual os países da América Ibérica diferem, quanto à política, dos Estados Unidos”.
OLIVEIRA TÔRRES é salutar, ao referir que “em países diferentes as instituições serão diferentes, mesmo fundadas em leis iguais. Talvez que, se as Constituições tivessem tido redações dessemelhantes, os resultados se assemelhassem. Importa, pois, apurar a diferença, isto é, a razão pela qual os países da América Ibérica diferem, quanto à política, dos Estados Unidos”.
Parece claro que a diferença substancial entre os dois países reside na
formação de suas sociedades políticas. Enquanto nos Estados Unidos a
Sociedade precede a Política, havendo um consenso social forte e
efetivo, a saber, um "self-government", no Brasil, assim como em todos os
países da América Ibérica, o Estado precede e forma a Sociedade, sem o
qual esta não existiria. Na verdade, a precedência do Estado sobre a
formação social, entre nós, caracteriza na sociedade brasileira, um
forte apego às coisas do Estado, anteriormente à sociedade em si mesma.
Por essa razão, a sociedade brasileira é uma sociedade altamente
dissensual na base e ausente em forças sociais que possam mobilizá-la em
direção a um projeto comum. Este apego às coisas do Estado
intensifica-se com a herança de uma cultura altamente patrimonialista
ofertada pela civilização lusitana, formadora do Brasil.
Por esse motivo, viu-se a adoção de uma versão republicana à moda
norte-americana sendo transportada para o Brasil, uma realidade social
em que o Estado é forte, patrimonialista e precedente em relação à
sociedade. Quais as conseqüências desse fato?
Primeiro, o presidencialismo brasileiro acabou com a função moderadora
do chefe de Estado, como era vigente na Constituição do Império. Assim, a
partir da República, o presidente passa a concentrar duas funções:
chefia de Estado e Chefia de Governo. Segundo, com a versão tripartite
dos poderes, tal como temos hoje, não há um órgão para estabelecer o
consenso político acima dos demais. Em razão disso, pressupunha-se que a
sociedade brasileira pudesse realizar um forte controle efetivo sobre
os poderes. Porém, tal não sucedeu. A sociedade brasileira, por herança
patrimonialista e concebida pelo Estado, não o controla efetivamente.
Muito pelo contrário. Por ele age e por ele é condicionada. A
conseqüência disso foi uma inadequação das instituições americanas ao
nosso contexto, que começou com a República e perpassa até os dias
atuais. A importação indevida das instituições americanas para o Brasil e também
para toda a América Ibérica em geral, acabou assim, por concentrar uma
alta carga de poderes nas mãos do Poder Executivo, o que durante o
século XX se agravou com diversas ondas de golpes de Estado e de
Autoritarismos que marcaram a região nesse período.
Este agravamento se deve ao fato de que, diferentemente dos Estados
Unidos, a sociedade brasileira e latino-americana de um modo geral não
possui forças sociais capacitadas para estabelecer um controle eficaz e
poliárquico sobre o Poder do Governo, razão pela qual os golpes e
regimes de exceção são facilitados frente ao fraco caráter controlador
das sociedades da América Ibérica.
Assim, na realidade, a adoção do presidencialismo e sua perpetuação na
história da República brasileira representou e continua a representar
uma paulatina inviabilidade para todo e qualquer projeto político sério e
comprometido com o bem comum. A saber: o sistema presidencialista e a
tripartição clássica dos poderes demonstra um anacronismo em relação ao
que a democracia constitucional brasileira aspira em termos práticos.
Os bens e valores do sistema democrático brasileiro são postados em
nossa Constituição de 1988 como fins da democracia constitucional.
Todavia, como vimos, tais finalidades são realizadas de modo mais
concreto e eficiente quando o Estado de Direito e o arranjo de suas
instituições estão organizados para corresponder às exigências do bem
comum.
Ora, diante disso, qual o problema sociológico evidente que atrapalha para a melhor concretização da democracia constitucional brasileira, na realidade social? Ou melhor, como podemos pensar um caminho eficaz para a efetividade social das normas constitucionais que tratam da composição ontológica de nosso sistema político?
Se a sociedade brasileira foi fundada de cima para baixo, como ficou
evidenciado, sendo o Estado e não a sociedade o verdadeiro pólo de poder
entre nós, fato é que o caminho para um melhor arranjo de instituições
rumo ao consenso não pode começar na sociedade, mas no Estado, gênese da
existência nacional. O consenso, em razão disso, deve ser primeiro
político, para depois almejar a comunidade.
CONTINUA...
Por: Marcus Boeira.
Em: goo.gl/HIZDMd
- ACKERMAN, Bruce. La nuova separazione dei poteri: prezidenzialismo e sistemi democratici. 1ª ed. Roma: Carocci, 2003;
- CALÓGERAS, J. Pandiá. Formação histórica do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938;
- DAHL, Robert. Poliarquia. 1ª ed. São Paulo: Edusp, 1997;
- FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001;
- HUNTINGTON, Samuel. A Terceira Onda: a democratização no final do século XX. 1ª ed. São Paulo: Ática, 1994;
- LINZ, Juan J. e STEPAN, Alfred. A Transição e Consolidação da Democracia: a experiência do sul da Europa e da América do Sul. 1ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999;
- LIPSET, Seymour Martin. Por que não houve socialismo na América? 1ª ed. Lisboa: Quetzal, 2001;
- A Sociedade Americana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1966;
- LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª ed. Barcelona: Ariel, 1970;
- MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Dinossauro: uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. 1ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1988;
- MELO FRANCO, Afonso Arinos e PILA, Raul. Presidencialismo ou Parlamentarismo? 1ª ed. Brasília: Senado Federal, 1999;
- OLIVEIRA TORRES, João Camilo. A Democracia Coroada. 1ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957;
- O Presidencialismo no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: edições O Cruzeiro, 1962;
- Instituições Políticas e Sociais do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Coleção F.T.D., 1965;
- PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império. In: Marquês de São Vicente, organizado por Eduardo Kugelmas, 1ª edição, São Paulo: editora 34, 2002;
- RAMOS, Elival da Silva. Uma nova Constituição: a proposta parlamentarista, artigo publicado na Revista Bimestral de Investigação e Cultura da editora convívio. São Paulo: volume 25, ano XXI, 1982;
- SÁNCHES AGESTA, Luis. Curso de Derecho Constitucional Comparado. 7ª ed. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1980;
- SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978;
- Morfologia Política e sistema de Poderes. São Paulo: Tese para exame de livre-docência, junto ao Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2003;
- TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Livro I: leis e costumes. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
- VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006;
- WEBER, Max. Economia y Sociedad. 15ª ed. reimpr. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário