Junto com a Princesa Imperial Dona Isabel e o Príncipe Dom Luis Gastão (o Conde d'Eu), temos a presença de Machado de Assis na Santa Missa campal em Ação de Graças pela a Abolição
Um exemplar da Gazeta de Notícias, de 16/11/1889, que tenho aqui ao lado já em frangalhos, conta, em sua primeira página, que por pouco a República não foi pelo ralo. E só não o foi por causa da má pontaria do barão de Ladário, ministro de D.Pedro II, que, intimado pelo general Deodoro da Fonseca a entregar-se, sacou do bolso um revólver e deu-lhe um tiro, que, porém, desviou-se. Em seguida, praças do exército que acompanhavam o general revidaram, ferindo o ministro, que seria transportado de maca para o palacete do Itamaraty, na Rua Larga de São Joaquim e, em seguida, para sua residência no Cosme Velho. Eram assim aqueles tempos. A República nascia aos trambolhões pelas mãos de um general que, até então, havia jurado lealdade eterna ao monarca. E que, ao que tudo indica, só se decidiu por colocar a tropa na rua porque, militar mais velho e de mais alta patente, temia que outros mais jovens e afoitos tomassem à sua frente no movimento. Pela Rua do Ouvidor naquela sexta-feira, grupos de patriotas, como diz o jornal, ergueram vivas à república e alguns poucos distintos cidadãos proferiram discursos. A maioria, porém, estava mesmo era ansiosa pelas notícias sobre a sorte do imperador. Parece que foi só.
Naquele dia, as pessoas de poder e cultura, na maior parte, evitaram sair de casa. Ou, se saíram, logo retornaram porque nada funcionou. A maioria não viu com bons olhos aquela aventura, pois, como se sabe, a questão não é saber como começa um golpe de força, mas sim como acaba. Depois de 117 anos, não se pode dizer que a República brasileira, que conhecemos até aqui, tenha tido uma trajetória digna: pelo menos cerca de 38 anos foram de arbítrio, perseguições e atentados ao estado de direito. Sem contar que a anarquia militar tem sido a regra. Os tempos de hoje, de sossego na caserna, são uma bem-vinda exceção, aliás. Entre as pessoas que acompanharam, céticas e preocupadas, o desenrolar dos acontecimentos de 1889, estava um funcionário régio, de 50 anos de idade, o escritor Machado de Assis (1839-1908). Era vizinho do barão de Ladário no Cosme Velho e não lhe deve ter passado em branco o estado de saúde do ex-ministro — atingido por tiros em quatro lugares. Que Machado de Assis não apoiava a República, pode-se facilmente deduzir das crônicas que publicou na imprensa carioca antes e depois do 15 de novembro de 1889.
Quem tiver interesse pelo assunto não deve deixar de ler "Por um novo Machado de Assis", livro recém-lançado do professor inglês John Gledson, especialmente os ensaios “Bons dias!”, “O patriotismo de Machado de Assis” e “A semana 1892-3: uma introdução aos primeiros dois anos da série”. Com a percuciência que já exibiu em outros grandes trabalhos sobre o maior romancista brasileiro de todos os tempos, Gledson mostra que, embora cauteloso em assuntos de política, Machado nunca escondeu sua preocupação com a atuação exaltada dos republicanos. Se a monarquia de D.Pedro II não havia sido o melhor dos mundos, Machado temia que a República pudesse ser muito pior. Dois anos depois daqueles acontecimentos no quartel-general que redundaram em quatro tiros em seu vizinho, ao começar a escrever crônicas dominicais para a Gazeta de Notícias, o romancista já testemunhara a confirmação de seus piores temores: como diz Gledson, tinha previsto com acerto que o federalismo só daria poder às oligarquias locais e destruiria toda esperança de democracia que pudesse ser abrigada por republicanos históricos e idealistas.
Sem o poder moderador do imperador, o Brasil encontrava-se na iminência de seguir o caminho de seus vizinhos hispano-americanos, retalhados e divididos em republiquetas sem expressão. Machado sabia que, bem ou mal, fora o poder monárquico que conseguira manter a unidade nacional, ligando pelo idioma regiões tão distantes umas das outras. Fora o centralismo da monarquia e seus poderes, mais a intrepidez de um povo acaboclado, que atirara os espanhóis em direção ao Pacífico. Agora, nas mãos dos militares, o Brasil vivia à matroca: não havia paz, nem parlamento, nem partidos. “Com o parlamentarismo tivemos longos anos de paz pública”, suspirava o cronista no dia 21/8/1892. Afinal, o primeiro ano da República fora marcado por uma febre de negócios e de especulação financeira, o chamado Encilhamento, como resultado de fortes emissões e facilidades de crédito. Muita gente perdera dinheiro, enquanto alguns espertalhões se locupletaram com os favores do novo poder (novidade?). No início de 1891, estourou a crise, com a falência de estabelecimentos bancários e empresas. Eleito presidente por um Congresso manietado, Deodoro logo entrou em crise com congressistas que se recusavam a lhe conferir maiores poderes. Fez o que todo ditador faria: fechou o Congresso, prometendo novas eleições. Sem condições de governar, renunciaria a 23/11/1891, deixando o posto para o seu vice, o general Floriano Peixoto, que até então nada mais fizera do que conspirar contra o titular. Foi pior. Floriano, em abril de 1892, prendeu mais de 150 pessoas, encarcerando algumas e desterrando outras, disseminando o “terror político”, na definição de Machado.
O resultado foi que, em fevereiro de 1893, estourou no Rio Grande do Sul uma guerra civil entre federalistas e legalistas, ambos os grupos liderados por caudilhos no pior estilo latino-americano. Por último, no auge da anarquia militar que caracterizou a república nascida da espada, o almirante Custódio de Melo, que fora decisivo na demissão de Deodoro, pensava agora mandar Floriano para casa. Içou a bandeira da revolta na baía da Guanabara, mas o que conseguiu foi endurecer ainda mais o governo de Floriano. Diz Gledson que é provável que Machado de Assis odiasse não só Deodoro como Floriano, “o primeiro por causa da corrupção associada ao Encilhamento; o segundo pela intolerância e pelas tendências ditatoriais”. Para o escritor, a cisão em si e a ameaça de guerra civil eram mais importantes do que quaisquer outras questiúnculas
Quem já leu Machado de Assis conhece bem seu pessimismo, resultado provavelmente de suas leituras de Arthur Schopenhauer. O escritor sabia que quem mandava, de fato, por trás dos militares que haviam dado um pontapé no traseiro de D.Pedro II, mandando-o para a Europa, eram os fazendeiros de São Paulo e Minas Gerais e uma classe de proprietários, comerciantes e atravessadores do Rio de Janeiro. O que o preocupava, porém, eram as rupturas no seio dessa oligarquia, que poderiam levar a um colapso da ordem e à ditadura mais deslavada. Sabia que os homens nunca compartilham o poder de boa vontade: tenham o que tiverem, quererão sempre mais, advertiu numa crônica de 26/2/1893. Por isso, imaginava que um sistema representativo seria sempre o menor dos males. Em suas crônicas desse período e até mesmo em seu romance Esaú e Jacó, publicado em 1904, não disfarça a nostalgia que sente do antigo regime que permitia, pelo menos, aos governos mudar pacificamente e com alguma aparência de ordem. “Assim aconteceu até 1889 com a monarquia e não há razão para que não aconteça depois de 1889, com a República”, escreveu.
Que Machado de Assis não apoiava a República, pode-se facilmente deduzir das crônicas que publicou na imprensa carioca antes e depois do 15 de novembro de 1889. Quem tiver interesse pelo assunto não deve deixar de ler Por um novo Machado de Assis, livro recém-lançado do professor inglês John Gledson, especialmente os ensaios “Bons dias!”, “O patriotismo de Machado de Assis” e “A semana 1892-3: uma introdução aos primeiros dois anos da série”. Até então, o mundo, para Machado de Assis, parecera sempre mais estável. Fizera carreira no funcionalismo, na maior parte do tempo no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, chegando a ocupar o cargo de oficial de gabinete do ministro, em 1881. À época da proclamação da República, fora nomeado diretor da Diretoria do Comércio, um cargo altamente honroso para quem era neto de escravos alforriados (no Império, ex-escravos e descendentes tinham chances de subir na vida, já nos EUA, mesmo abolindo a escravidão antes, isso era IMPOSSÍVEL!).
Na verdade, não tinha muito do que se queixar da monarquia, que lhe abrira as portas para a ascensão social. Com a República, esse mundo fora virado às avessas: por ter apoiado na véspera um ou outro militar, muitos perdiam o emprego. Portanto, não seria recomendável ao cronista Machado de Assis escrever com desenvoltura, sem travas no pensamento. Como assinala Gledson, Machado escrevia para um mundo que cada vez mais detestava, à medida que envelhecia. John Gledson (1945) é doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Princeton e aposentou-se pela Universidade de Liverpool. É autor de pelo menos mais dois livros excepcionais, Machado de Assis: impostura e realismo e Machado de Assis: ficção e história, além de ter organizado uma coletânea de contos machadianos, Contos: uma antologia. Publicou ainda livros sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade e outros autores brasileiros.
FONTE:
- Por um novo Machado de Assis, ensaios, de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, 452 p.
DEUS SALVE O BRASIL!
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