domingo, 25 de outubro de 2015

DA NECESSÁRIA SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E GOVERNO (PARTE II)

Cem anos de doutrinação são extremamente destrutivos

PARTE I

Por essa razão, o presidencialismo e a tripartição clássica dos poderes não ofertam terreno sadio para nossa democracia constitucional. Isso por duas razões. Primeiro, ao elevar o caráter unipessoal do presidente da república na figura de chefe de estado e de chefe de governo confunde na mesma pessoa, duas funções diametralmente diferentes. Como define SOUZA JUNIOR, “estado não é o mesmo que governo. Enquanto o primeiro é a sociedade política global – o todo -, governo é um dos elementos do Estado, ou seja, o elemento diretor ou o conjunto de órgãos que detém o poder na sociedade política. E, em sentido mais estrito (…) governo é o grupo que exerce, num determinado Estado e em dado momento, a ‘função executiva’. Se o Estado, como unidade social, permanece no tempo, os governos, ao contrário, passam, sucedem-se uns aos outros. Ademais, o Estado, como sociedade global, não se identifica com raças, classes, regiões ou partidos, mas os transcende; já os governos devem exprimir, o melhor possível, a opinião político-partidária dominante. Enfim, o Estado tem objetivos próprios que não se confundem com os objetivos próprios dos governos”.

Enquanto o Estado cuida do consenso político, a saber, da unidade integral acerca dos valores éticos comuns partilhados na comunidade política, o governo, por ser produto de uma disputa político-partidária, representa interesses e aspirações de cunho ideológico e setorial, sendo controlado por uma oposição institucionalizada. Assim, como se vê, as funções de chefia de Estado e de chefia de Governo são diferentes, pois enquanto o primeiro cuida do consenso, o segundo, nasce do conflito ideológico. Por isso, quando se misturam no mesmo órgão unipessoal duas funções tão distintas, acaba-se por, não raras vezes, confundir-se Estado com Governo, a saber, valores e consenso, com partidos e ideologias. Além disso, os objetivos setorizados do governo dificilmente são partilhados com a oposição, o que não acontece com a chefia de Estado, que busca a integração nos valores do bem comum. Sendo assim, resta clara a imprescindibilidade de uma separação funcional e institucional entre tais funções, no sentido de que a manutenção dos valores e do consenso político não sejam instados por objetivos ideológicos presentes nas aspirações de um chefe de governo.

SOUZA JUNIOR, acerca disso, sustenta que “como corolário dessa distinção, extrai-se que os processos de preenchimento da chefia de Estado e da chefia de Governo não podem ser idênticos, mas devem se conformar à natureza específica de cada uma. A forma de designação do titular da chefia de Estado vede propiciar a escolha de alguém que seja, o máximo possível, desvinculado das correntes partidárias disputantes do poder. Já, ao contrário, a forma de indicação do ocupante da chefia de Governo deve conduzir à escolha de um líder de partido que esteja identificado com as aspirações da opinião pública dominante. Esses os critérios que nos devem orientar na busca da forma de designação ou de eleição mais conveniente à sociedade política, uma vez que a função de chefia de Estado exige, como condição para bom exercício, a imparcialidade e a neutralidade partidárias, ao passo que a chefia de Governo requer a condição de líder da corrente partidária prevalecente. Nomear o chefe de Estado segundo critérios político-partidários não quer dizer democracia política, mas parcialização da suprema magistratura do Estado, aliás perigosíssima para a sobrevivência da democracia. Eleger o chefe de governo segundo critérios avessos à opinião política, isto sim, é limitar ou negar o princípio democrático de participação popular no governo".

Diante disso, é fundamental ter presente a necessidade de se construir um caminho para uma nova engenharia de instituições políticas que assegure o consenso político. Entre nós, o presidencialismo acabou por concentrar alta carga funcional para o Poder Executivo, pois que lhe conectou as necessárias funções de chefiar o estado e chefiar o governo. Além disso, resultou em outra conseqüência própria do regime presidencialista: a de que o presidente é eleito diretamente pelo povo e, por isso, só a ele presta contas.

Fato é que, conforme já observamos, a sociedade brasileira é passiva e paternalista, pois tudo espera do Estado. Isso é assim porque em nossa formação, o Estado cria, concebe e forma a sociedade de cima para baixo, tornando-a dependente das castas políticas que formam o Estado brasileiro. Ora, diante de uma sociedade fraca, com baixos fatores de consenso internos, paternalista e dependente do Estado, é evidente que ela não consiga estabelecer modos efetivos de controle sobre o poder político de baixo para cima, tal como a sociedade americana. Nesta, o "self-government" faz com que o meio social, tal como vimos em TOCQUEVILE, exerça efetivamente, um controle rigoroso sobre o poder. Diferentemente, a sociedade brasileira, formada de cima para baixo, não possui condições sociais e de formação histórica suficientes para estabelecer um controle efetivo sobre o poder.

Dessa forma, quando nossas elites políticas importaram o regime presidencialista e a tripartição clássica dos poderes, logo no advento da República, desconheciam os resultados que tal decisão poderia resultar para o futuro do Estado brasileiro. Sim, pois se a sociedade brasileira é paternalista e fraca para estabelecer controles eficazes sobre o poder político, como poderia controlar o poder do presidente da república e fazer com que o mesmo lhe prestasse contas? Ou ainda: como tal sociedade, sem caráter consensual de base, poderia estabelecer um controle sobre os três poderes políticos entre si, arbitrando-os em situação de conflitos? Ou mais: como podemos almejar o consenso se nem a sociedade brasileira, nem tampouco as instituições do presidencialismo possuem, na tripartição clássica, condições funcionais para um verdadeiro consenso político?

Se o Brasil é um país em que o Estado precede a formação social, a gênese de nossa existência política nacional perpassa os quadros burocráticos e patrimoniais do Estado brasileiro. Assim, a construção de um consenso efetivo sobre valores partilhados em comum pela sociedade brasileira não pode começar no próprio seio social, mas na arquitetura das instituições políticas do Estado, razão pela qual o consenso entre nós não pode ser “social”, como nos Estados Unidos, mas “político”, respeitando-se aí o processo de formação histórica brasileira.

Um país marcado por diferenças culturais e regionais, deve organizar as suas instituições políticas para garantir o consenso político sobre os valores éticos comuns. E esse consenso só é possível, conforme vimos, quando se institucionaliza um órgão acima das disputas ideológicas partidárias, a saber: um poder político suprapartidário e localizado acima das ideologias e interesses setoriais. Enfim, uma instituição política (com funções políticas bem definidas), que assegure a preservação dos valores e assim, do consenso. Por essa razão, tal poder não pode ser o Poder Executivo, órgão governamental de direção política que, dinamizado pelos conflitos ideológicos e plurais ocorridos no espaço público em que partidos e tendências diametralmente opostas, competem em vista desse cargo. O órgão de que estamos falando é um poder que tem como função chefiar o Estado como um todo, buscar a unidade do país e a integração dos bens partilhados em comum por toda a sociedade brasileira. Por isso, sua principal missão é manter o consenso e assegurar a existência dos demais poderes políticos do Estado.

Separar Estado e Governo e, assim, dividir as funções hoje presentes em nosso presidencialismo, em atribuições cabíveis para dois órgãos distintos, parece ser o primeiro caminho para a construção de um modelo institucional mais eficiente e comprometido com o bem comum.

Vemos essa necessidade porque, diferentemente dos Estados Unidos, em que o consenso é social, motivo pela qual o governo é um mero acidente e não representa ameaça ideológica para a integração que já existe na base social (pois os partidos políticos norte-americanos não possuem diferenças ideológicas, mas apenas estratégicas diante do consenso que já existe na sociedade), o Brasil é um país em que o consenso só é possível por intermédio da política estatal. Para isso, o Estado deve arranjar suas instituições e conceber um poder acima das disputas ideológicas partidárias para manter a unidade da nação e a integração sobre os valores comuns. Eis porque, a chefia de Estado e a chefia de Governo devem estar em campos separados.
Ademais, dentro da estrutura política da tripartição de poderes brasileira, o presidente não poderia exercer o papel de um poder moderador, uma vez que nesse arranjo institucional há uma rígida separação entre os órgãos, não podendo, em tese, haver interferência de um poder sobre o outro. Assim, não há possibilidade de existir um controle efetivo sobre os poderes, uma vez que, nem a sociedade (fraca) e nem o Executivo (impossibilitado funcionalmente), podem estabelecer um controle efetivo sobre os poderes entre si. Daí, a necessidade de um poder acima dos demais para representar o consenso político e manter a integridade da nação, os valores comuns e, assim, cuidar do bem comum.

Para nossa democracia constitucional se dinamizar em direção ao seu fim (bem comum), é importante que todas as demais causas estejam em sintonia. Assim, a comunidade política é mais soberana quando a cidadania é mais plural e mais universal. A cidadania é plena quando a dignidade da pessoa é assegurada de modo concreto pelas instituições do Estado de Direito. E estas, quando melhor arquitetadas, facilitam a realização do bem comum. E, o melhor arranjo institucional para nosso sistema político é aquele que fomenta o consenso político, entendendo que a sociedade brasileira não é ativa para organizar por si própria, um consenso social. E, o consenso político só subsiste quando há um poder do Estado institucionalizado para manter a unidade e a integração, que esteja acima dos interesses partidários e dos grupos de pressão, enfim, que não comprometa o bem comum com posições ideológicas (típicas do órgão de direção política governamental).

KARL LOEWENSTEIN, constitucionalista alemão, tratou das diferenças entre democracias e autocracias dizendo que a marca das primeiras está na distribuição do poder. No presidencialismo, o poder é fortemente concentrado nas mãos do presidente da república, que concentra funções de Estado e de Governo que, em princípio, são incompatíveis.

Diferentemente disso, sugerimos que a distribuição política das funções indicadas em poderes distintos ocasionaria três resultados satisfatórios para a efetivação prática e sociológica das normas constitucionais que constituem nossa democracia constitucional:

  1. O surgimento de um órgão – chefia de Estado- para a preservação do consenso político; 
  2. A divisão do poder executivo que, no modelo anacrônico do presidencialismo brasileiro, concentra várias funções políticas, tais como funções de Estado, Governo, Administração e Exército; 
  3. A separação entre Estado e Governo, assim, acarretaria um distanciamento entre as duas funções que, agora ajustadas em dois poderes distintos, corresponderiam a duas atividades antagônicas: com relação ao Estado, haveria um órgão para a defesa do consenso político, para a preservação da unidade nacional e para a manutenção da integridade política dos demais poderes. Já com relação ao governo, existiria um órgão de direção política embasado em uma determinada ideologia representativa das aspirações sociais no momento eleitoral oportuno, em que o partido vencedor procuraria dinamizar o país rumo às exigências da sociedade, empreendendo a direção política em virtude das tendências legitimadas pela sociedade política no período eletivo.

A chefia do Estado, então, se justificaria como meio de manutenção da integridade dos valores comuns frente ao pluralismo de ideologias e interesses. Ao mesmo passo, porém, ter-se-ia um órgão institucionalizado – chefia de governo – para o conflito do pluralismo ideológico entre grupos, partidos, grupos, associações e todos os cidadãos que participassem na esfera pública.

Todavia, hoje, verificamos no Brasil um arranjo de instituições que une a mesma pessoa e o mesmo poder, funções estas que deveriam ser distintas. Apesar disso, a manutenção do modelo anacrônico de separação de poderes e do presidencialismo não impede “totalmente” a concretização do bem comum entre nós. Pari passu ao inadequado arranjo de instituições políticas, a democracia constitucional brasileira ainda assim procura, na medida do possível, realizar os valores consagrados no texto da Constituição de 1988.

As causas do sistema democrático constitucional brasileiro estão em sintonia normativa (Direito Constitucional) e justificativa (Filosofia Política), mas precisam corresponder de modo mais empírico à realidade democrática nacional. E isso é possível quando as instituições políticas, responsáveis pela própria existência do Estado de Direito e, assim, da própria matéria prima democrática, mostrem-se arquitetadas de modo coerente e realista com as finalidades éticas da ordem política postadas na Constituição.
RAMOS diz que “é verdade que não se pode conceber uma Democracia sem as divergências de opiniões, inerentes á liberdade de pensamento. Entretanto, não é menos verdadeiro que qualquer sistema democrático implica sempre em um mínimo de consenso: exatamente no que toca valores e instituições fundamentais da própria Democracia. As lutas político-partidárias, expressão do choque ideológico entre os diferentes segmentos sociais, devem ser travadas no plano da ação governamental, sem colocar em risco os pilares sobre os quais está assentado o edifício político”.

No caso brasileiro, o sucesso real de nossa democracia constitucional somente irá caminhar de modo mais seguro em direção aos valores e ao consenso quando nossas instituições políticas forem arranjadas de maneira a garantir o próprio consenso e a preservação dos valores. A existência de um órgão acima das disputas político-partidárias poderia ser um bom caminho para o desenvolvimento político e institucional de nosso sistema político. O advento de órgão responsável pelo Estado – chefia de Estado – não apenas asseguraria o consenso político e a integridade nacional, como também impediria instabilidades e possíveis golpes de Estado que formam o caráter genético das instituições de praticamente, todos os países latino-americanos, sobretudo, o Brasil. Além disso, facilitaria um jogo equilibrado e interativo entre os demais poderes políticos, uma vez que existiria, a partir de então, um poder funcional responsável pela harmonia dos demais.
 
Por: Marcus Boeira. 
FONTES: 
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  3. DAHL, Robert. Poliarquia. 1ª ed. São Paulo: Edusp, 1997;
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  7. LIPSET, Seymour Martin. Por que não houve socialismo na América? 1ª ed. Lisboa: Quetzal, 2001;
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  11. MELO FRANCO, Afonso Arinos e PILA, Raul. Presidencialismo ou Parlamentarismo? 1ª ed. Brasília: Senado Federal, 1999;
  12. OLIVEIRA TORRES, João Camilo. A Democracia Coroada. 1ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957;
  13. O Presidencialismo no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: edições O Cruzeiro, 1962;
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  15. PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império. In: Marquês de São Vicente, organizado por Eduardo Kugelmas, 1ª edição, São Paulo: editora 34, 2002;
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 DEUS SALVE O BRASIL

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