Sobre a decisiva atuação de Winston Spencer Churchill na fase inicial da Segunda Guerra, o filme O Destino de uma Nação mostra o quão fundamental é para uma sociedade a existência de líderes virtuosos que inspirem e motivem os compatriotas em momentos cruciais da história. Porque são essas lideranças que as convencerão de que é preciso trabalhar e fazer sacrifícios para implementar ideias e projetos fundamentais para a sociedade, ou até mesmo para enfrentar uma guerra.
Churchill é o exemplo de político que, pela sua grandeza, conseguiu reconstruir sua história pessoal e, ainda em vida, deixar um legado inesquecível. Não era, porém, um político qualquer. Era um homem de ideias, de convicções, um intelectual e um escritor refinado, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1953, de formação militar e com uma personalidade bélica que o prejudicou em momentos-chave de sua vida, mas que foi fundamental no momento mais sombrio, mais tenebroso (darkest hour), da Inglaterra na Segunda Guerra.
Escrevo mais uma vez sobre Churchill porque ainda estou sob impacto do excelente filme O Destino de uma Nação e da leitura de 12 de seus discursos reproduzidos e analisados por Ricardo Sondermann no livro Churchill e a Ciência por Trás dos Discursos – Como Palavras se Transformam em Armas, que será lançado no dia 31 de janeiro pela editora LvM. Sondermann empreende uma análise técnica da retórica poderosa, cativante, popular que Churchill desenvolveu em suas intervenções públicas desde as menos conhecidas às mais célebres “Sangue, trabalho árduo, suor e lágrimas” e “Jamais ceder”.
Filho de pais que fugiram da Alemanha e da Áustria por causa do nazismo, Sondermann fez em seu livro uma espécie de tributo ao homem que conduziu uma obstinada e corajosa luta pela liberdade contra o mal representado pelo nazifascismo. Ao apresentar o contexto histórico e analisar os 12 discursos, que são de suma importância para entendermos como Churchill conseguiu liderar e imprimir a sua marca na história, Sondermann ajuda-nos a entender por qual razão o legado benéfico do estadista inglês volta a ser invocado em filmes, séries, livros, eventos.
Neste atual e delicado momento histórico do Ocidente, muita gente se deu conta do fracasso de sucessivas gerações de elites políticas. A prova empírica desse fracasso foi exposta pelo relatório Tendências Globais: Paradoxos do Progresso, elaborado em 2016 pelo National Intelligence Council, órgão de inteligência do governo americano e sobre o qual escrevi aqui na Gazeta do Povo em janeiro de 2017.
Ao apontar o risco de conflitos internacionais, de aumento do terrorismo e de baixo crescimento econômico como tendências para os anos vindouros, o documento revelou de maneira não intencional o fracasso do atual modelo político e da forma de fazer política dos líderes contemporâneos. Por quê? Porque foram justamente as escolhas equivocadas dessas lideranças políticas que provocaram a tendência nada otimista apontada no relatório.
O documento expôs outra verdade inconveniente: a forma de fazer política está errada e os políticos vistos como moderados – como o ex-presidente Barack Obama continua sendo – são, na verdade, líderes débeis que deixaram a situação fugir ao controle. Escrevi no ano passado e repito: os riscos de novos e mais intensos conflitos mundo afora só estão em discussão por responsabilidade direta deles, que, embora continuem incensados pela imprensa, têm sido rejeitados por parcelas cada vez mais numerosas das respectivas sociedades que representam.
Diante da constatação de que as elites políticas do Ocidente fracassaram, um número significativo de pessoas tem se afastado dos seus representantes e passado a desconfiar ainda mais das instituições políticas. O que existe hoje em grande parte dos países ocidentais é um abismo de desconfiança e rejeição que separa as comunidades e as elites políticas. Esse abismo real, amplo, profundo, permite que políticos profissionais demagogos e outsiders interesseiros ocupem espaços que na política jamais ficam vazios.
Se um outsider acerta, como tem sido o caso do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em certas questões culturais, políticas e econômicas fundamentais, trata-se de uma exceção, não da regra que se impõe, que se confirma pelo horror e rejeição que ele, Trump, provoca nas elites políticas, na intelectualidade, na intelligentsia.
Cito Trump e lembro de seu ato simbólico de grande relevo: logo que assumiu a presidência, em 2017, ele restituiu o busto de bronze de Churchill que havia sido retirado do Salão Oval em 2009 pelo ex-presidente Barack Obama. Para deixar a história ainda mais interessante, o busto do estadista conservador fora um presente do então primeiro-ministro inglês trabalhista Tony Blair, um socialista fabiano, para o então presidente republicano George W. Bush.
Quando qualifico Churchill como exemplo de estadista que emergiu, finalmente, no fim da vida, mas que não seria o que foi sem as experiências positivas e negativas do passado, não é raro que aqui no Brasil a reação comum seja de ostentação de orgulho da própria ignorância sobre o nosso passado, de autoimolação ou de comparações descabidas entre grandes personagens históricos de outros países e personagens menores da política brasileira contemporânea – como Lula.
Um parênteses: daqui a dois dias, aliás, será julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4) um recurso da defesa do ex-presidente contra a condenação a nove anos e seis meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro proferida pelo juiz federal Sergio Moro. Lula é, a propósito, um anti-Churchill.
Mas será verdade que nunca tivemos estadistas com características similares às de Churchill? Claro que sim. Talvez o maior deles tenha sido o deputado conservador Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), dono de “uma inteligência privilegiada, orador eficiente pela concisão e temido pelo sarcasmo, trabalhador obsessivo, legislador fecundo”, como definiu o historiador José Murilo de Carvalho. Vasconcelos foi personagem central do Primeiro Reinado e da Regência. Iniciou a vida parlamentar como deputado liberal para depois tornar-se “o principal teórico do Regresso Conservador de 1837”. Em 1828, ele já era “o orador mais brilhante da Câmara e a primeira voz da oposição” a dom Pedro I.
Relatos de dois estrangeiros dão uma ideia do seu protagonismo: o reverendo Robert Walsh registrou, em Notices of Brazil in 1828 and 1828, que os brasileiros da época o comparavam a John Adams e a Benjamin Franklin – dois dos pais fundadores dos Estados Unidos – por suas virtudes intelectuais e políticas. Tendo conhecido Vasconcelos pessoalmente e o visto em ação na Câmara, Walsh descreveu-o como o grande líder da oposição que, da tribuna, era sempre ouvido atentamente por seu pares. Conhecido pela “precisão lógica e agudeza de raciocínio”, sua linguagem e oratória eram eloquentes e convincentes. Na Câmara, elogiou Walsh, ele não tinha rival. Em seu livro História do Brasil, o historiador John Armitage chamou-o de o “Mirabeau do Brazil”, que, de “orador difuso e sem nexo” em 1826, “tinha-se tornado dois anos depois tão eloquente e tão sarcástico, e havia apresentado um tão grande desenvolvimento do talento de discutir, que nenhum outro membro da casa lhe podia ser comparado”. Armitage comparava-o ao escritor, jornalista e político Honoré Gabriel Victor Riqueti (1749-1791), o conde de Mirabeau, um dos maiores oradores da política francesa que, durante a fase inicial da Revolução Francesa, destacou-se como um dos grandes nomes da Assembleia Nacional.
Porque atuava intensamente em quase todas as sessões da Câmara, “discursando, aparteando, apresentando projetos e emendas, polemizando sempre, pois tinha a bossa da combatividade”, Vasconcelos tinha “predileção pelo uso da ironia e do sarcasmo como armas retóricas”, assim como Benjamin Disraeli e, mais tarde, Churchill no Parlamento inglês. Dono de uma “ironia sutil e ferina”, o deputado brasileiro “tornou-se um orador temido pelos adversários”. Em seu tempo, o nosso Vasconcelos foi, com justiça, comparado aos grandes nomes da política europeia e americana.
Comecei este texto a dizer o quão fundamental é para uma sociedade a existência de líderes virtuosos – não só na política – que inspirem e motivem as pessoas de seu país em momentos cruciais da história. Mesmo com uma biografia que nos impõe críticas, como seu equívoco acerca da escravidão, Vasconcelos – assim como Churchill – era um conservador antirrevolucionário que deixou uma obra política importantíssima ao ser ator fundamental no processo de “colocar em funcionamento a monarquia representativa, acabar com os resíduos do absolutismo ainda vigentes na cabeça e nas práticas do imperador, de seus ministros e até mesmo nas leis” e, posteriormente, ao ajudar a impedir que no Brasil se instaurasse o caos e a anarquia. É uma pena que o seu esforço e de tantos homens tenha sido destruído pelo golpe militar de 1889, cuja natureza destruidora e revolucionária era similar à da Revolução Francesa.
Vasconcelos é um dos gigantes brasileiros que ajudaram a forjar uma tradição virtuosa localizada principalmente no século 19, tradição que devemos conhecer e que nos deve servir de fonte de inspiração. E nem é preciso ignorar os seus erros para celebrar os seus acertos. Que a parte benéfica desse legado do qual faz parte Bernardo Pereira de Vasconcelos possa ser restaurada e nos guiar, impedindo que sejamos presas dóceis de projetos de poder que representam o que de pior temos no país.
A decisão do TRF4 no processo do ex-presidente Lula e as eleições majoritárias deste ano nos impõem uma responsabilidade fundamental: pensar que tipo de pessoas somos ou queremos ser; que tipo de lideranças devemos ou não apoiar; que tipo de país queremos construir. Em momentos como este só é possível produzir bons frutos se agirmos corretamente, com base na verdade e nas virtudes, tendo o passado como sábio conselheiro.
Que não caiamos novamente no engodo de atores políticos que, por serem quem são, nos rebaixam à sua ínfima estatura moral, ética e política. A política, porque importa, não deve, porém, jamais, ser a única solução para os problemas do país, nem os políticos devem ser os protagonistas da nossa história.
O destino da nossa nação – e perdoem-me pela pobre rima – está nas nossas mãos.
Por Bruno Garschagen
LINK ORIGINAL - GAZETA DO POVO
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