terça-feira, 8 de agosto de 2017

CARTAS INÉDITAS DA PRINCESA ISABEL

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[Artigo escrito pelo historiador, genealogista, escritor e jornalista Prof. Armando Alexandre dos Santos e publicado na edição número 49 do boletim “Herdeiros do Porvir”, referente aos meses de abril, maio e junho do corrente.]

Duas cartas escritas pela Princesa Isabel em 1908, ambas relativas ao casamento de seu segundo filho, D. Luiz de Orleans e Bragança (1878-1920), são agora divulgadas, em primeira mão, por “Herdeiros do Porvir”.

A primeira delas, escrita em português, participa ao Rei D. Manoel II, de Portugal (1889-1932), a renúncia que o primogênito da Princesa, D. Pedro de Alcântara (1875-1940) fizera de seus direitos hipotéticos ao trono do Brasil, e a conseqüente ascensão do secundogênito à condição de herdeiro imediato da Princesa. D. Manoel, último Rei de Portugal, subira ao trono poucos meses antes, em circunstâncias trágicas, após o assassínio de seu pai, o Rei D. Carlos, e de seu irmão primogênito, o Príncipe Real D. Luís Filipe, no famoso atentado do Terreiro do Paço, ocorrido 1-2-1908. Manteve sempre relações muito próximas com a Princesa Isabel e com seus parentes brasileiros. Destronado pela revolução republicana de 1910, seguiu para o exílio, na Inglaterra, onde se casou com a Princesa Vitória Augusta de Hohenzollern-Sigmaringen. Faleceu em 1932, sem deixar filhos. Com sua morte, extinguiu-se o ramo liberal da Casa Real Portuguesa, que descendia de D. Maria II e havia perdido, assim com os Bragança do Brasil, a varonia de Bragança. O ramo miguelista da Casa de Bragança, descendente do Rei D. Miguel I – ramo esse que conservara a varonia bragantina – foi, então, reconhecido pela totalidade dos monarquistas lusos como único herdeiro das tradições do antigo regime, encerrando-se assim uma questão dinástica que durara um século.

A segunda carta, escrita em francês, foi enviada ao Papa São Pio X, então reinante, participando o noivado de D. Luiz com a Princesa Maria Pia de Bourbon-Sicílias (1878-1973) e rogando que o Pontífice abençoasse o casal.

S. Pio X nascera em 1835, numa humilde família do norte da Itália, na região do Vêneto. Seu nome era Giuseppe Sarto. Foi com grande sacrifício que conseguiu estudar e ordenar-se sacerdote. Quando menino, para cursar a escola primária precisava caminhar diariamente 14 quilômetros, e o fazia descalço, para poupar os preciosos sapatinhos que necessitava usar durante as aulas.

De grande inteligência e ainda maior piedade, dirigiu-se para o Seminário de Pádua, onde fez seus estudos em Filosofia e Teologia. Ordenado sacerdote em 1858, foi designado para auxiliar do pároco de Tombolo, uma pequena aldeia onde serviu durante nove anos. Foi, depois, pároco de Salzano, uma aldeia um pouco mais importante, durante outros nove anos. Nos nove anos seguintes, foi cônego, reitor do seminário e vigário-geral na diocese de Treviso. Nomeado Bispo de Mântua em 1884, lá ficou por mais nove anos, sendo em seguida elevado a Cardeal-Patriarca de Veneza. Estava já há nove anos nessa altíssima dignidade quando foi eleito Papa.

A se manter a curiosa coincidência, de durar nove anos cada uma das fases de sua brilhante carreira, deveria morrer nove anos depois... Mas isso não ocorreu, pois Deus o conservou no Sumo Pontificado durante onze anos.

Faleceu em 1914, poucos dias após a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Já em vida gozava de fama de grande santidade, e lhe eram atribuídos diversos milagres. A Princesa Isabel tinha, por ele, grande veneração. Depois de falecido, multiplicaram-se as graças alcançadas por sua intercessão. Foi beatificado em 1951 e canonizado em 1954.

Em todas as fases de sua vida, sempre foi religioso exemplar. Foi modelo de seminarista, modelo de coadjutor, modelo de pároco, modelo de cônego, modelo de bispo, modelo de cardeal, modelo de Papa. Seu lema, “omnia instaurare in Christo” (tudo restaurar em Cristo), acompanhou-o desde a humilde aldeiazinha em que começou a trabalhar até o sólio de São Pedro. O Pontificado de São Pio X, embora tenha transcorrido num período particularmente difícil e conturbado da História da Igreja, deve ser considerado um dos mais fecundos de toda essa História. Especialmente digna de nota foi a veemente condenação do modernismo, considerado pelo Pontífice como “a síntese de todas as heresias”.

Ambas as cartas são manuscritas, do próprio punho da Princesa, com sua letra regular e inconfundível. Serviram como rascunho para as missivas efetivamente enviadas aos respectivos destinatários e, ao mesmo tempo, foram conservadas como documento de arquivo. Estiveram durante décadas no arquivo da Família Imperial do Brasil. Emprestadas pelo Príncipe D. Pedro Henrique de Orleans e Bragança (1909-1981) ao Prof. Alexandre Eulálio Pimenta da Cunha (1932-1988), foram por engano, depois da morte deste último, incorporados ao acervo doado à Unicamp pelos seus herdeiros. Atualmente estão no CEDAE (Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio), no Instituto de Estudos da Linguagem – IEL, da Unicamp. A segunda das cartas estava classificada erradamente no catálogo da CEDAE; o funcionário encarregado da classificação não identificou, pelas palavras iniciais “Très-Saint Père”, que o Papa era o destinatário da missiva, e classificou-a como sendo “destinada a pessoa não identificada”. Provavelmente por isso terá passado despercebida por outros pesquisadores que, antes de mim, haviam pesquisado essa documentação.

Passo à transcrição da primeira carta, respeitando a ortografia e a pontuação originais:

“9 de Novembro de 1908, Eu.

“Querido sobrinho

“Os estreitos laços de parentesco e a amizade que em todas as ocasiões nos testemunha me levão a annunciar-lhe que meu querido filho Pedro estando resolvido, com nosso consentimento, a casar-se com a Condessa Elisabeth Dobrzensky filha solteira do Conde Dobrzensky de excellente familia austriaca, mas não de estirpe regia, por este motivo renunciou por si e sua descendencia a seus direitos ao throno do Brasil, recahindo estes, portanto, depois de mim, no meu querido filho Luiz.

“Creia-me sua tia mt. affeiçoada,”

As palavras “por si e sua descendencia” estão acrescentadas, ao texto da Princesa, com a letra de seu marido, o Conde d’Eu, que também anotou, no alto, a lápis, os seguintes dizeres: “Carta escripta ao Rei de Portugal pela Senhora Dona Isabel”. O acréscimo terá sido sugerido, para maior clareza do alcance futuro da renúncia, pelo Conde d’Eu a sua esposa, e terá sido incorporado ao texto da carta definitiva. A anotação a lápis terá sido aposta por ele, que era muito organizado e metódico, para que, nos arquivos familiares, ficasse sempre bem claro que era o destinatário do documento.

Passo à transcrição da segunda carta, no francês original, seguida da respectiva tradução:

“Très-Saint Père

“Permettez à vos tout dévoués enfants de venir faire part à Votre Sainteté de leur bonheur pour les fiançailles de leur second fils Louis avec la Princesse Pia de Bourbon fille du Comte et de la Comtesse de Caserta. Em même temps nous implorons pour eux une bénédiction toute spéciale à l’occasion de leur mariage qui doit avoir lieus dans la seconde quinzaine d’Octobre. Pia est une garantie de bonheur. Elle réunit toutes les qualités que jê désirerais à ma belle-fille. En plus elle porte, Très-Saint Père, un nom de baptême qui m’est Cher entre tous.

“Nous príons Votre Sainteté de continuer à croire toujours à tout notre entier, et permettez-nous d’ajouter à tout notre respectueusement affection d’enfants quis se prosternent aux pieds de Votre Sainteté.

“Château d’Eu, 15 Sept. 1908”.

Tradução:

“Santíssimo Padre

“Permiti a vossos devotadíssimos filhos que venham participar a Vossa Santidade sua felicidade pelo noivado de seu segundo filho Luiz com a Princesa Pia de Bourbon filha do Conde e da Condessa de Caserta. Ao mesmo tempo imploramos para eles uma bênção muito especial por ocasião de seu casamento, que deve ter lugar na segunda quinzena de outubro. Pia é um penhor de felicidade. Ela reúne todas as qualidades que eu desejaria para minha nora. Ela porta ademais, Santíssimo Padre, um nome de batismo que me é entre todos caro.

“Pedimos a Vossa Santidade que continue a crer sempre em nosso inteiro – e permiti-nos acrescentar – em todo o nosso respeitosamente afetuoso devotamento, devotamento e afeto de filhos que se prosternam aos pés de Vossa Santidade.

“Castelo d’Eu, 15 de setembro de 1908.

No momento estão sendo dados os primeiros passos para a abertura oficial, na Arquidiocese do Rio de Janeiro, do processo de beatificação da Princesa Isabel. Se esse processo for adiante, será indispensável a coleta e catalogação, para exame das autoridades do Vaticano, de toda a correspondência privada da Princesa. À guisa de modesta contribuição, aqui ficam essas duas cartas.

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