Na recém-proclamada República, o livro de um monarquista que atacava os Estados Unidos acendeu o alerta vermelho do governo. Não tardou muito até que, em 1893, a obra, intitulada "A ilusão americana" (1890), fosse proibida e confiscada por ordem do presidente Floriano Peixoto, conhecido como “Marechal de Ferro”. O autor, Eduardo Prado (1860-1901), teria sido preso não fosse uma romanesca e arriscada fuga pelos sertões de Minas Gerais e Bahia. De Salvador, ele conseguiu embarcar em um navio para o autoexílio na Europa.
No ensaio, o alvo principal da crítica e até mesmo da indignação de Prado era o “servilismo voluntário” a que se prestava a República brasileira ao imitar os EUA. Um exemplo disso, segundo o autor, seria a cópia da bandeira e da Constituição norte-americanas pelos republicanos. José do Patrocínio (1853-1905), no dia da Proclamação, chegou a hastear oficiosamente uma bandeira republicana, calcada sobre a norte-americana, apresentando faixas horizontais alternadamente verdes e amarelas.
A inspiração na carta dos Estados Unidos resulta, para ele, na perda da identidade nacional. Em trecho da obra, afirma que “o furor imitativo dos EUA tem sido a ruína da América”. A melhor maneira de combater esse problema seria seguir as leis de desenvolvimento histórico de cada sociedade. No Brasil, estas levariam à continuidade da tradição monarquista.
Proveniente de uma família da elite cafeeira paulista, Eduardo era o mais europeizado Prado de sua geração. Filho de D.Viridiana, era parte de um clã do qual saíram várias figuras públicas, como o irmão, Antonio, conselheiro do Império, e o sobrinho Paulo, autor de Retrato do Brasil (1928). Intelectual e bacharel em Direito, era membro da Academia Brasileira de Letras e homem de negócios.
Ele era alguém determinado a defender seus ideais políticos. Antes mesmo de publicar A ilusão americana, o autor já reunira vários artigos contra o regime republicano em Os fastos da ditadura militar. A proclamação da República, em 1889, só fez avivar a necessidade de defender sua ordem social de referência, a “idade de ouro”, em suas palavras. Comprou até o jornal O Comércio de São Paulo, em 1895. Queria denunciar escândalos sobre membros do governo e comprovar violações das liberdades públicas e privadas.
O violento ataque de Eduardo Prado à política externa americana teve como uma de suas bases um estudo sobre as relações internacionais do país entre 1823 e 1892 – época de vigência da Doutrina Monroe. Prado queria deixar claro que “por trás” das declarações de defesa dos ideais de fraternidade e cooperação pan-americanos, a Doutrina Monroe, anunciada pelo presidente James Monroe (1815-1825), mesmo estabelecendo uma política de não intervenção recíproca com a Europa, pretendia, de fato, reservar a América para si, e os Estados Unidos sempre agiram do modo como, na época, preconizava Theodore Roosevelt (1901-1909), falando suavemente e com um porrete na mão.
Prado apresenta os EUA como um inimigo político do Brasil, uma ameaça que lesaria a economia nacional e não oferecia valor cultural ou estético algum. A ausência de identidade entre os dois povos – formação e constituição com disparidades profundas em raça, religião, índole, língua, história e nas tradições – foi mais do que ressaltada pelo autor.
As consequências nocivas da política de boa vizinhança, invisíveis para republicanos brasileiros como Benjamin Constant (1836-1891), estão descritas em A ilusão americana: “Os brasileiros devem aceitar a lição, e sejam quais forem as fatalidades do momento, saibam eles repelir o estrangeiro que só conseguirá aviltar o país que aceitar os seus serviços”. A crença de que “os Estados Unidos não consentem na América outro governo, senão o republicano”, revoltava Eduardo Prado.
A reação negativa do governo federal ao livro não foi à toa. O ataque à política externa brasileira e à diplomacia americana atingia a aliança entre Floriano e jacobinos, patriotas exacerbados, fundada em uma ideia de solidariedade continental, contra uma possível intervenção europeia a favor da Armada e dos federalistas.
A crescente hegemonia norte-americana no continente preocupava Eduardo Prado. As insurreições com ideias republicanas, como a Confederação do Equador (1824), a Revolução Farroupilha (1835-1845) e a Revolução Praieira de 1849, eram uma prova dessa influência. Também o México e a Colômbia foram espoliados, a pretexto da ajuda dos EUA a esses países contra a hostilidade espanhola.
Em A ilusão americana, Eduardo Prado manifesta ainda o repúdio à doutrina liberal e ao uso político das alegadas intenções fraternas norte-americanas. Para ele, as atitudes “vis” dos governos norte-americanos provavam sua total ausência de fraternidade. Assim, argumentava, o modelo de sociedade com igualdade universal fundado pelos Estados Unidos era inviabilizado por eles próprios.
Como, por exemplo, a reclamação dos EUA contra a atitude brasileira de permitir que os revoltosos do sul escravagista durante a Guerra Civil americana (1861-1865) se reabastecessem de água e carvão por aqui. No livro, Prado defende a política externa do império brasileiro e afirma que a conduta da União foi correta, já que o “reconhecimento dos insurgentes como beligerantes é cousa muito das tendências do direito internacional moderno. É uma medida aconselhada pelos próprios interêsses da humanidade. O título de beligerante confere certos direitos; mas, a êsses direitos correspondem certos deveres que, a bem de todos, devem ser cumpridos pelos beligerantes”.
A atitude dos Estados Unidos com o Peru também é exemplar, mostrando bem o comportamento condenado por Prado. Quando foi consolidada a república peruana, de 1821 a 1860, os EUA estavam envolvidos com o contrabando de guano, fertilizante responsável pelo sustento da economia do país sul-americano.
Assim que o governo do Peru pressionou os americanos a pagar indenizações para compensar o prejuízo que tinham causado, eles se recusaram. Quando se trata de defender seus interesses, diz Prado, os Estados Unidos não respeitam convenções, acordos ou tratados, apenas redefinem quem é ou não seu amigo.
No fim da leitura de A ilusão americana, é possível notar como o autor sabia se mover no campo político e estava distante da imagem do homem cosmopolita alheio às questões nacionais.
A pedido de amigos, entre eles o também monarquista barão do Rio Branco (1845-1912), Eduardo Prado chegou a dar um voto de confiança à pacificação política prometida por Prudente de Morais (1894-1898), o primeiro presidente civil brasileiro.
Depois de reconhecer a impossibilidade da Restauração do velho regime, o intelectual atuava no partido monárquico como força de oposição à República e procurava influir na política econômica do novo governo por intermédio de Rui Barbosa, a quem, igualmente vítima do florianismo, acolhera no exílio europeu.
Os propósitos imediatos de Eduardo Prado fracassaram, mas até hoje seu texto é lido como uma lúcida análise da política dos primeiros anos da República, e também como uma advertência contra os riscos de um alinhamento irresponsável com potências imperialistas. Não só isso: tratava-se de um intelectual preocupado em compreender, quer por contraste, quer por semelhança, a singularidade do Brasil como nação, na melhor tradição do nosso pensamento social.
CARMEN LUCIA FELGUEIRAS É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTORA DA TESE “O FUTURO E SUAS ILUSÕES: OS ESTADOS UNIDOS DE MONTEIRO LOBATO E EDUARDO PRADO” (IUPERJ/1999).
excelente texto. Mas deve-se ressaltar a postura monarquista e autoritária de Eduardo Prado. A monarquia não representava a natureza do povo brasileiro, mas foi uma construção das elites nesse território.
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